O Falso Peregrino
CAPÍTULO I
OS PRIMEIROS FRAGMENTOS
Dias nublados. Eles eram os preferidos de Saulo. Os ares de incerteza que pairavam sob aqueles tetos cor de chumbo eram como um combustível para as manhãs do advogado paulistano. Afeito às rotinas desafiadoras, achava instigante correr o risco de ser surpreendido por uma tempestade.
O ritmo - quase sempre frenético, das primeiras horas de suas manhãs davam o tom do seu dia a dia. Entre o gole de café amargo e o nó na gravata, fazia contato com fragmentos da miséria humana visitando os sites de notícias.
— Meu Deus! Assaltaram a padaria aqui da rua e mataram o seu Adelino! — disse em voz alta.
Naquele instante, a intensidade matinal deu lugar ao descompasso. A profundidade dos laços de afeto - criada nos anos de convivência com o comerciante português, ficou evidente. Lembrou-se das muitas conversas nas manhãs de domingo. Fundamentais para que Saulo atravessasse o período de divórcio com resignação e alguma sanidade.
— Tens que entender. Todas as manhãs nós acordaremos com alguma perda. Seja a perda de dinheiro, de saúde, de amores ou de amizades. E essa “perda do dia” nem sempre será clara. Por isso, o que tu não podes é perder a chance de viveres com intensidade. Deves seguir adiante. Aceites as perdas e te alimentes dos presentes que a vida te dá ao longo do caminho – filosofava Adelino.
O FALSO PEREGRINO
A caminho do escritório, sentiu um profundo vazio. Surdo para as canções que brotavam no rádio, Saulo secou as lágrimas diante dos muitos e impiedosos semáforos. Com o olhar fixo na luz vermelha, lembrou que o conselheiro lusitano havia deixado o Rio de Janeiro na década de 1990, por conta da violência. Naquela manhã de segunda, a tal “perda do dia” era visível para Saulo. E o dia – que mal começara, perdera todo o sentido.
O sorriso de boas vindas de Lúcia, a secretária do escritório, não teve o efeito habitual. Perguntado sobre como estava naquela manhã cinzenta, mentiu:
— Ótimo, Lúcia. Como em todas as outras manhãs.
Na sala de reuniões, junto aos sócios Camilo e Wagner, ouviu que a semana seria intensa por conta de um determinado cliente. A ação que buscava indenização junto ao governo do estado havia recebido sentença negativa.
— O juiz entendeu que foi obra do acaso. Não houve culpa ou omissão – disse Camilo.
— A gente conhece o temperamento do Ibraim. Ele vai surtar. Até porque terá que arcar com todas as custas do processo – emendou Wagner.
— Pois é. Vai ser difícil essa conversa, viu? E, sinceramente, eu não vejo nenhuma possibilidade de obtermos uma vitória na próxima instância. Vai ser um desperdício de tempo, dinheiro e energia. O que acham? Devemos recorrer ao TJ? – questionou Camilo.
Diante da conversa dos sócios, Saulo permanecia impassível. Justamente ele, que sempre encontrava soluções inesperadas para tantos casos. Simplesmente, não esboçava uma reação sequer. Sua mente perambulava entre imagens de Aline com suas malas prontas, bebedeiras solitárias em cantinas no bairro do Bexiga e manhãs com o amigo Adelino e seus providenciais sanduiches - repletos de mortadela e atenção.
— Saulo, você está bem? – perguntou Camilo.
— Ouviu o que dissemos? Precisamos decidir o que fazer no caso do Ibraim – enfatizou Wagner.
Saulo olhou alternadamente para os sócios e para a secretária, que atenta, mantivera sua caneta a postos, até ali.
— Lúcia, por favor. Deixe-nos sozinhos por alguns minutos. Já lhe chamo – disse
CONTINUA...