Os Soldados da Liberdade de São Luís do Maranhão

Em 1951, quando o povo de São Luís ficou em pé de guerra para tirar do Palácio do Governo um governador fabricado pela fraude e corrupção eleitoral, os partidos que formavam as Oposições Coligadas convocaram o povo – os então denominados Soldados da Liberdade – ao motim popular, prometendo-lhes as armas necessárias para marcharem contra o Palácio do Governo e retirarem de lá, à força, aquele que eles consideravam usurpador do cargo de governador. A Praça João Lisboa virou Praça da Liberdade e um sobradão colonial, o quartel general da revolta. Diariamente, servia-se uma feijoada e se distribuíam cigarros ao povo reunido na Praça João Lisboa enquanto os políticos oposicionistas proferiam exaltados discursos. O lugar, portanto, vivia cheio de Soldados da Liberdade dispostos ao sacrifício das suas próprias vidas para que a vontade popular prevalecesse.

Havia quem dissesse que a maioria estava mais para a feijoada e os cigarros do que para enfrentar as balas da polícia, mas, de qualquer forma, todos estavam muito orgulhosos por serem chamados de Soldados da Liberdade. Para evitar a anunciada invasão, a Polícia Militar entrincheirou-se à frente do Palácio do Governo, e a ordem era atirar no primeiro que ultrapassasse uma certa área, logo batizada pelo povo como Paralelo 38, numa alusão à Guerra da Coreia que se travava na época entre americanos e norte-coreanos. Escaramuças já tinham ocorrido entre a Polícia Militar e populares, resultando em mortos e feridos. Os policiais tinham ordens de dissolver à bala qualquer massa popular ameaçadora. Eu era menino de calças curtas quando essa rebelião popular – que ficou conhecida como A Greve de 1951 – ocorreu e guardo na minha memória algumas histórias que os jornais não contaram...

Num desses dias, eu e o meu irmão mais velho, José, estávamos lá, junto com a multidão, escutando os inflamados discursos. Eu, esperando a feijoada, José, os cigarros... Um deputado oposicionista discursava, exibindo um rosário de balas:

- Bravos Soldados da Liberdade! A vontade do povo será defendida até a última bala! Estamos aguardando a chegada das armas e então marcharemos contra o Palácio do Governo! Fora, Eugênio Barros!

- Fora, Eugênio Barros! - repetia o povo, freneticamente.

De repente, uma caçamba de recolhimento de lixo parou a uns duzentos metros da multidão, coisa que ninguém percebeu por causa do alarido popular. E enquanto os garis faziam silenciosamente o seu trabalho, o povo cantava o Hino Maranhense:

Entre o rumor das selvas seculares,

Ouviste um dia no espaço azul, vibrante,

O troar das bombardas no combate,

E, após, um hino festival soante.

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Nesse momento, um dos garis, de cima da caçamba, deixou escapulir das mãos uma lata vazia que bateu no chão estrepitosamente. Ouvindo o barulho, que o medo tornou semelhante a uma rajada de metralhadora, alguém gritou:

- É a polícia! Lá vem bala!

Foi um salve-se-quem-puder dos diabos! Sapatos, bolsas, guarda-chuvas tudo foi deixado para trás na correria desabalada! E dizem que o primeiro a se escafeder foi o bravo líder oposicionista que mostrara o rosário de balas à multidão...

Alguns dias depois, um doido folclórico, de apelido Bota-Pra-Moer (assim apelidado porque, quando estava em crise, batia com a cabeça nas paredes ou nos postes) aproximou-se da multidão excitada e gritou:

- Tem algum cabra macho aí que queira se juntar comigo para invadir o Palácio agora e tirar de lá Eugênio Barros, vivo ou morto?

Apareceram voluntários de todo lado; uns muniram-se de facas, facões, pedras, paus, galhos de árvores e, sob o comando de Bota-Pra-Moer, que empunhava uma rota bandeira brasileira, rumaram para o Palácio do Governo, cantando o Hino Maranhense. E a turba enfurecida, aos gritos de Fora, Eugênio Barros!, foi avançando, arrebanhando mais voluntários em cada esquina...

Mesmo morrendo de medo, eu caminhava junto com o povão, já me sentindo um herói, pois não tinha nenhuma dúvida de que a coragem daquela gente era realmente poderosa e irresistível. Dentro de poucos minutos, com certeza, ainda que muitos caíssem, varados pelas balas da polícia, estaríamos lá dentro do Palácio do Governo. Mas, de repente, ao avistar o Paralelo 38 e a Polícia Militar entrincheirada, Bota-Pra-Moer voltou-se para o povo e perguntou:

- E agora, quem vai na frente com a bandeira?

E acrescentou, com uma gargalhada:

- Sou doido, mas não tanto... Sou Bota-Pra-Moer, não Bota-Pra-Morrer!...

E porque os Soldados da Liberdade também não o eram, voltaram todos murchos para o quartel-general para esperar pelo que realmente interessava, isto é, a feijoada e os cigarros...

E eu, que já me via nas manchetes dos jornais, saudado como o “herói-mirim da resistência popular”, devo confessar que já estava preparadíssimo para, ao primeiro tiro dos samangos, botar sebo nas canelas!

Santiago Cabral

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Santiago Cabral
Enviado por Santiago Cabral em 09/08/2023
Código do texto: T7857363
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