Todos os Minicontos
A Arte de Conquistar o Mundo
O exército do país A invadiu o país B. Morreram muitas pessoas nos dois lados. O país A, enfraquecido com as baixas, venceu. Mesmo debilitado, percebeu que amedrontara o país C, e isso o impeliu para invadi-lo. Outras mortes. Mas agora a coragem supera qualquer dificuldade. Pôs abaixo o país D. Mal terminaram a comemoração regada a vinho, tomaram posse do país E.
Até que um dia, de tão poucos soldados no A, aconteceu que o exército de meia dúzia de esfomeados do país Y que, a exemplo de J. Pinto Fernandes, não estava na história, aproveitou e invadiu tudo e todos com paus, pedras e pelegaços.
Infidelidade
Derrubou a porta com um machado recém-adquirido, junto com outros instrumentos cirúrgicos. Depois, golpeou a esposa na cabeça, no pescoço e cinco vezes no ventre. Gritava toma aqui no ventre livre, toma puta desgraçada, goza aqui no ferro, goza aqui. Só parou quando a força abandonou o braço. Aí, sentou pra esperar a polícia. O machado no colo, enfim quieto. As facas e outros apetrechos nem chegou a usar. O corpo dela ficou num estado tal que até os caras do IML se horrorizaram. A caminho da delegacia, ele repetindo: legítima defesa, legítima defesa.
Educação Continuada
Não me faz passar vergonha. Já disse que não te trago mais no super. Já disse que não. Em casa tu vai ver. Não adianta chorar. Pára com isso, guri. Ah, mas tu me paga. Pára com isso, já te disse. Não vou te dar e pronto. Que coisa mais irritante: não! é não, não dá pra entender? Levanta daí. Tu ainda não me viste braba. Não adianta espernear. Ta todo mundo olhando, pára com isso. Desta vez não adianta, não vai levar. Levanta duma vez. Vamos ligeiro com isso, chega de cena. Cala essa boca. Pode ir parando. Já te disse que não e não vou repetir, que coisa mais impossível, isso. Ta bem, leva. Mas só dessa vez.
O que Inventou a Literatura
Sempre escreveu torto em linhas retas. Criou a primeira dissidência literária do Senhor. Fez escola. Os seguidores fizeram uma igrejinha em homenagem a ele, o torto. Depois, grupos rivais fizeram outra dissidência e com isso outra igrejinha. E outra e outra e mais outra e assim em todos os tempos e em todos os lugares. Hoje nem lembram ou nem citam o nome do torto que iniciou tudo. Escola gerando escola. Tanto foi que a literatura virou essa coisa do demônio.
O Bilhete
Na cama, o corpo dele estirado. Duro, mais morto que qualquer pessoa pudesse calcular. Ao lado, o vidro de comprimidos quase vazio, com a tampa aberta. Na mesinha de cabeceira, o bilhete: “Desculpa, amor. Não foi culpa sua”.
A Mão
Tanta raiva, mas tanta, e por tanto tempo, que era ate previsível. O soco com toda a força, a força represada em anos e anos. Olhou para a cara da mãe e disparou a mola do braço. O punho foi com toda a gana. A mão desviou na hora e se quebrou toda na parede. A mãe, chorando, levou o filho por hospital. No táxi, o filho deitou a cabeça no colo dela. Os dois acarinharam aquela mão absurda.
Banho
Quando fui tomar banho, a calcinha da mana tava pendurada no box. Foi que foi, não me agüentei: esfreguei na cara, lambi bem no ponto, esfreguei na língua, na boca, aquilo foi indo, nunca meu pau ficou tão duro assim. Com a esquerda esfregando a calcinha na boca e com a direita tocando uma muito a valer, uma muito intensa naquela chuva morna que me caía por cima. Depois que saí do banho, ela reclamou não sei de quê. Daí eu me descontrolei e disse um monte de palavrão pra ela. Se ninguém entendeu aquilo tudo, muito menos eu.
O Gigante
Quando teu pai chegar, tu vai ver o que é bom. Nunca fiquei sabendo o que era bom, no caso. Só lembro que, a cada vez que ouvia as ameaças, o pai ficava vinte centímetros mais alto. Bem depois, na adultez, quando eu tentei conversar com meu pai, ele estava com oito metros de altura e não me ouvia. Só se eu falasse muito alto. Era tarde.
Tia
Estradinha de terra entre uma fazenda e outra. Eu e a tia indo pro churrasco. Só nós dois no carro. Ela, casada com um irmão do pai, era uma velha de trinta, acho eu. Ela disse: quinze anos e dirige melhor que muito homem que eu conheço!
Eu, tímido que dava pena, dei um risinho quase invisível. E segui: olho na estrada, braço é braço. Ela: como o futebol tá te fazendo bem... olha essas pernas! Eu, firme no volante, querendo impressionar. Ela: mas como tu vai rápido, lindo! Deve conhecer cada curva dessa estrada. Olha aquela sombra de eucaliptos ali, que coisa mais linda! Eu fiz força e consegui dizer: é mesmo! Ela: esse churrasco do teu avô deve demorar pra sair, nem precisa ir tão ligeiro...
Eu não entendi nada, na época. Lembrando disso, hoje só digo: puta merda.
O Segredo do Patricarca
No leito de morte, o patriarca adiava o momento de partir até que todos estivessem juntos, para ouvir dele mesmo. Em dois dias, todos chegaram. Era chegada a hora da revelação. Sempre houve muito boato no povoado sobre os patacões de ouro do velho. Época de revoluções, não era raro enterrarem panelas grandes, com moedas até a borda. No caso dele, sempre diziam que ele tinha muitas dessas panelas enterradas. Decerto era isso que o patriarca queria contar na presença de todos os filhos, para evitar que algum mais ligeiro abocanhasse o ouro. Todos ali, em silêncio, e o velho começou a falar. Mas o patriarca gostava de contar tudo com detalhes e minúcias. E aí, morreu antes de contar o tal segredo. O enterro parecia uma seca de janeiro. Nenhuma lágrima.
Infernos
O casamento andava aos pedaços. Ele, um bruto e cachaceiro. Ela, doente dos nervos e mãe de quatro filhos. Logo que nasceu o segundo, ela teve umas complicações na cabeça e não se endireitou mais. Um dia subiu na árvore dos enforcados o mais alto que conseguiu. E se atirou de ponta a cabeça. Ficou tetraplégica. No hospital, o marido engravidou-a. Esta é uma história de ficção.
Quando o Futuro Chegar, Passou
Aos noventa anos, o velho Gonçalo exibia aos mais próximos o extrato bancário, repetindo as privações todas que sofreu para conseguir aquele montante, o sacrifício que fez para juntar a dinheirama, que não era pouca. A história era sempre a mesma: depois do jantar, ele dizia: quero mostrar uma coisa para você. Buscava o extrato no esconderijo e soltava a falação. Terminava o discurso dizendo que estava guardando o dinheiro para gastar no futuro. Êta bicho que nunca chega, esse.
Instruções Definitivas para Emagrecimento
Deite, espere, dê um jeito na vida e morra de uma vez. De início, o corpo pode inchar um pouco. Não ligue, é coisa rápida. Depois, é garantido. Você emagrece e nunca mais recupera o peso. Esse é único spa que você descansa, emagrece mesmo e jamais engorda novamente. E é grátis, além de tudo. Pense nisso.
Momentos Depois
Depois que enterraram o comendador, a multidão foi se esparramando entre os túmulos até desaparecer portão afora, mal escondendo a pressa logo ao entrar nos carros. Até porque caía uma chuvinha miúda e enjoada. O político que fez discurso na tampa do caixão aproveitou o clichê para dizer que até Deus estava chorando a morte daquele homem insubstituível. Depois que saiu todo mundo, o cachorro do comendador se deitou sobre a lápide e ali ficou, sem pressa nenhuma, e com o olhar se esticando pro nada.
O Legítimo Proprietário
Ele dizia que comprou de um velho sábio a caixa da verdade. Parece que pagou os olhos da cara. Mostrava a caixa e o conteúdo aos amigos, depois de esgrimar discursos e dialéticas com quem quer que ousasse. Abria a caixa ritualisticamente, e deitava o verbo. No início, pela novidade, a casa vivia repleta. Não demorou para que ninguém mais aparecesse. Viveram sozinhos. Ele, a caixa e o conteúdo.
Guilherme Tell
Meu primo ganhou de natal um arco-e-flecha. Treinávamos pontaria em latas, galinhas e árvores. Fizemos torneios. Ele era mais velho que eu, treinava mais e vencia sempre. Aí me convenceu a colocar uma maçã na cabeça. Se eu pudesse, contava como é sentir aquele zunido da flecha vindo, aquele friagem que amolece a gente e o barulho dos ossos da cara se rebentando enquanto a flecha entra, é tudo muito rápido.
Esporte
A mãe pediu que eu cuidasse do mano, ela ia sair. Ele ainda bebê de carrinho e eu sempre quis ser piloto de fórmula um. Os móveis atrapalhavam muito o meu desempenho. Tanto foi que experimentei empurrar o meu carro escada abaixo. Mas foi acidente.
Despedida de Solteiro
Eu ia me casar com ele, até que soube. Não acreditei que saiu logo com o aval do meu irmão pra me aprontarem essa. Quando soube, ficou até difícil escolher para qual deles devia apontar minha raiva. Mas tiveram até que me contar de novo, a tal despedida.
Foi um com o outro, entende? Os dois estão de caso. Quando soube, ficou até difícil escolher para qual deles devia apontar minha raiva. Pior foi quando me convidaram para irmos os três juntos. Onde esse mundo vai parar, meu Deus, foi o que pensei. Pior mesmo, quando aceitei. Naquela loucurada toda, entende? Agora não sei pra onde aponto minha raiva. Nem sei se tenho raiva. Nem sei mais nada. Se foi bom? Como assim? Olha meu estado! Que pergunta.
Tartarugas ao Mar
Éramos iguais. No tamanho, na pele e na trajetória adivinhada. Morávamos em uma elipse branca, que se inaugurou fechada e não se sabe como. Estava escrito que irromperíamos cedo ou tarde, e do casulo ao mundo seriam alguns passos. Corríamos todas para a mesma direção. Palcos de areia para o verão das fortes. Aves do rasante, fortes. Darwin move o ângulo dos bicos. Nem sequer dar adeus ao casulo era possível. Se conseguíssemos ultrapassar esse espaço, ganharíamos o mar e um bônus vital de trezentos anos. Voltaríamos lá, no mesmo ponto, e faríamos outras elipses brancas. Deixaríamos o colo das ondas sem pressa, no retorno. Mas por enquanto, não há tempo. Nem sequer para olhar as apegadas na areia, enquanto não chegam os apagadores de espuma.
Véspera
Livros, discos, duas fotos. Tudo na grande mala, quando ergueu os olhos e a viu chegando. “Pensou bem nisso?” Ele não respondeu. Fechou com vagar a mala. Foi até o banheiro, tentou olhar-se no espelho. Ela parou perto dele. O silêncio entre eles, um piano a martelar no vazio. Ele mija com displicência indecisa. Apanha a escova de dentes e volta ao quarto. Por uma frestinha, enfia a escova na mala. “Tchau”, disse. Ela, em seguida: “Pensou bem nisso?”. Ele não respondeu e fechou devagar a porta definitiva. Quase medindo os passos, sai à calçada arrastando a mala enorme, maior que ele. A idéia é não comparecer ao próprio aniversário de oito anos.
Sapatos Martelando a Pedra
Com rosto de estátua, abre o envelope. Depois, ensaia o sorriso de quem já sabia. Caminha devagar até o Correio do Povo, preenche os papéis. Depois, vai à Zero Hora e faz o mesmo. Em seguida, a uma floricultura. Em casa, engraxa os sapatos. Espreme os cravos do nariz, toma um banho e tenta dormir. Na manhã seguinte, lê desatento os jornais enquanto toma o café bebido. Pega um táxi e conversa o de praxe, parece que o tempo firmou, etc. Desce e caminha até a peça que o aguarda. Os sapatos martelam o silêncio. Os convidados ainda não chegaram, mas virão em seguida. Põe o pé esquerdo no banquinho encomendado. A perna direita vai, em câmera-lenta, em um gesto teatral, se erguendo. Ele se acomoda no caixão, fecha os olhos e cruza as mãos sobre o peito. Os convidados não tardam.
A Construção do Muro
Está no jardim, esticando as vistas ao redor. Sente-se desprotegido, como se a calçada se continuasse no terreno dele. Constrói uma cerca de madeira e pinta de branco. Admira sua pequena obra. “Para que eles não entrem”, pensa. Poucos anos depois, manda derrubarem a cerca e põe outra, de tela. E assim fica o pátio, até que acha prudente plantar arbustos que se enredarão na tela. “Para que eles não entrem”, pensa. Mais um tempo e ele manda arrancar tudo e construir logo um muro de tijolos. Outros anos se passam até que chama os pedreiros e manda aumentarem a altura. “Para que eles não entrem”, pensa. Por fim, indaga-se sobre a proteção efetiva do muro. E vai ele mesmo à construção de um muro ainda mais alto e reforçado por dentro. “Para que eu não saia”.
O Baralho de Todas as Manhãs
Todas as manhãs, um envelope por baixo da porta, com uma carta de baralho dentro. Primeiro o às, em seguida o dois, depois o três. Assim foi: terminado o primeiro naipe, vieram os outros. Ouro, paus, copa. No começo, os envelopes eram brancos. Depois, cinza. No final, escuros. No começo, achou engraçado e não deu bola. Depois, já não disfarçava a preocupação. Veio o dez, o valete, a dama. Faltava o rei espadas. Naquela manhã, logo ao acordar, foi direto à porta. Não havia envelope. Olhou para o chão e tentou sorrir. Deixou-se ali um tempo, e acabou por abrir a porta. Lá estava o rei, bem vestido e com uma espada reluzente ao sol da manhã: “Eu sabia que me esperavas”. Dito isso, partiu para o abate.
Viagem ao Abismo da Pedra Redonda
I.Quando eu caminhava ao abismo da pedra redonda, ela me segurou. Pegou meu braço pela camisa amassada, quis me convencer que a vida valia, coisas assim. Falou em família, futuro, coisas assim. Acatei, um pouco por ela, acho. II. Vivemos juntos séculos. Criamos três filhos, todos encaminhados: profissão estável, trabalho estável, vida afetiva estável, tudo. III. Nosso relacionamento: bom no início, depois morno, depois nem brigávamos mais. IV. Um dia, fomos rever o lugar onde nos conhecemos. Quando eu caminhava ao abismo da pedra redonda, minha camisa estava amassada e ela não tava nem aí. Voei bonito.
O Último Desejo de Eugênio Alencastro
Quando Eugênio Moreira de Alencastro morreu, descobriram ao lado dele um papel com o seu último desejo escrito: não queria ser enterrado. Pedia para ser exposto em um poste de esquina, na praça principal, pendurado pelas orelhas. Vereadores questionavam a legalidade do pedido, quando o Coronel Vicente de Paiva Guimarães interrompeu: “Era meu amigo, vai ser como ele quis”. O escrito continho um adendo: o velho queria também um pelotão de carabineiros, para alvejar os abutres que porventura viessem a comer-lhe a carne. Assim se fez. Durante vários dias, os soldados vigiaram o corpo. Nos relatório que pude averiguar, constam três abutres abatidos. As pessoas do lugar dividiam-se quanto ao estranho último desejo. A princípio, olhavam-no de revés, como se curiosidade fosse pecado. Depois, transitavam por ali com naturalidade, e apesar do mau cheiro chegavam a conversar perto dele.
Certo dia, um dos soldados cansou daquilo e deu um tiro no morto.
O Velho Isaac Stanislawsky Nunca Mais Voltou ao Bar
“A memória é um parto ao contrário”, disse o velho. No bar, todos silenciaram. Era sempre assim, quando Isaac iniciava o discurso da noite. Abriu a carteira de couro e tirou um recorte dobrado em oito: a foto promocional do filma “A lista de Schindler”. O dedo grave de Isaac na didática do palavrório. A fala engrossava a veia do pescoço. “Vocês não sabem o que foi aquilo”. Silêncio no bar. “Meu peito é oco”. No bar, um silêncio de mármore. Todos estáticos. Isaac bebeu mais três goles de um golpe e fez uma careta. Depois, mandou os amigos a puta que pariu e foi dormir. Já era tarde.