O Sono dos Justos

Meia noite. Glória dançava sobre uma cama de motel, completamente alterada. Como estivesse sendo levada por algum tipo de transe.

Carlos a observa sentado em uma poltrona.

Ele fuma um cigarro calado, como se avaliasse a situação.

Ela tinha uma boa carne. Tudo no lugar. Mas pelo menos uns trinta anos por trás de si.

Ela parecia estar numa boa. Carlos não estava.

- O que foi? – Ela perguntou, sem parar de alternar os pés sobre a cama.

- Nada. – Ele respondeu, sem tirar os olhos do chão.

- Você tem que se animar um pouco mais.

- Por quê?

- Sei lá. É sexta feira.

- Já é sábado.

- Tanto faz... não sendo segunda feira está tudo ótimo.

- Que diferença faz o dia da semana?

- Ter que trabalhar ou não... Não é óbvio?

- Pra mim qualquer dia é dia. O calendário é irrelevante.

- O que você faz da vida?

- Talvez você não vá gostar de ouvir.

Glória parou de pular e se sentou na beira da cama. Ela fixou os olhos em Carlos e abriu um sorriso amarelo.

- Agora estou curiosa.

- Melhor continuar assim.

- Não gosto de mistérios.

- Tudo bem então.

- E aí?

Carlos se levantou da cadeira, pegou um copo de cima do frigobar e encheu com uma dose de uísque.

- Eu um assassino de aluguel. Matador, como algumas pessoas preferem dizer.

- Sério?

- Sim.

- Quantas pessoas você já matou?

- Não faço esse tipo de conta.

Glória prendeu os cabelos no topo da cabeça e soltou o sutiã.

- Você não tem medo de ir pra o inferno?

- Inferno? Isso não existe.

- Mas está na bíblia. O inferno, Deus, o demônio, o apocalipse.

- Isso pra quem acredita na bíblia.

- E você não acredita?

- Na obra original não existe nada disso. Não existe inferno. Não existe satanás... pelo menos não como antítese a Deus. E claramente não existe danação eterna.

- Obra original?

- O Torá, o livro dos Judeus. A bíblia é só um filler escrito por fãs do original.

- Não sei se estou entendendo. O Torá não é o equivalente ao velho testamento?

- Não exatamente. Só uma parte. Mesmo assim com ressalvas.

- Certo. – Glória falou, como se estivesse realmente confusa.

- Veja só. Na escritura diz que Deus deu APENAS ao homem o livre arbítrio. Os anjos apesar de mais poderosos que o ser humano, não possuem o livre arbítrio. Eles apenas executam as funções dadas por Deus.

- Certo.

- Então... Os anjos caídos, os demônios, Lúcifer incluso, nunca possuíram, nem nunca vão ter o livre arbítrio. Logo, nunca poderiam ter escolhido trair a Deus. Traição é uma escolha.

- O que você quer dizer com isso?

- Que se Lúcifer liderou uma rebelião de anjos e veio a terra para tentar corromper a humanidade, ele só poderia ter feito isso se fosse a mando de Deus. Só que Deus além de onisciente e onipotente, é justo e amoroso. Não faz o mínimo sentido que ele tenha criado o demônio com o objetivo de levar corrupção à humanidade e pra castigar eternamente quem não seguisse os mandamentos. E Deus também não poderia ter sido enganado, afinal ele sabe de tudo com antecipação.

- Agora estou entendendo.

- Então... Não existe danação eterna na visão dos Judeus. Tudo isso é uma criação das religiões que se basearam no judaísmo. O que existem são provações dadas por Deus para testar o homem, e para que um dia a humanidade vença o pecado e a morte.

- Mas nada disso que você falou dá o direito de um homem tirar a vida do outro. Muito menos por dinheiro.

- Com certeza. Você está certa. Mas eu hei de me resolver com Deus sobre isso. E não com qualquer diabo.

- Você é Judeu?

- Não. Mas isso não me impediu de estudar e ler as escrituras.

- Faz sentido.

- Mas por que você escolheu essa profissão?

- Eu poderia dizer que a vida me levou a isso. Mas seria uma mentira. Na primeira vez que tirei uma vida, foi em legítima defesa. E talvez algumas das outras vezes que se seguiram. Só que em certo ponto, o gatilho não tinha mais o peso que tinha antes. Se é que você me entende.

- Sinto muito por isso.

- E você? Como chegou onde está hoje?

- Onde estou hoje?

- O que te levou a se prostituir...

- Eu não me prostituo.

- E que tipo de mulher aceita vir para um motel de beira de estrada com um total desconhecido?

- Uma prostituta... ou alguma mulher que não tem nada melhor pra fazer.

- Então você se encaixa no segundo caso.

- Sim. Eu não conseguiria dar um preço pelo meu corpo.

- Faz sentido.

- Já que você foi sincero e me falou sobre você, eu vou contar o que me trouxe até aqui de fato.

- Estou ouvindo. – Carlos falou, tomando um gole do uísque.

Glória se levantou da cama, abriu o frigobar e tirou uma lata de cerveja. Tomou um gole diretamente da boca da lata e voltou a se sentar na cama.

- Meu pai faleceu semana passada. E minha mãe duas semanas antes.

- Sinto muito, minha querida.

- Tudo bem.

- Do que eles faleceram?

- Minha mãe faleceu de câncer. Já vinha se arrastando com a doença há alguns anos. Já o meu pai se matou.

Carlos deixou o copo sobre o frigobar e escondeu as mãos entre as pernas, como se não soubesse o que falar.

- Eu tenho uma irmã mais velha. Ela tinha um fascínio não muito natural pelo meu pai. Meus pais a tiveram quando ainda eram muito jovens... 15 ou 16 anos talvez. A vida inteira ela parecia ter um ciúme doentio da minha mãe. Era algo que beirava uma doença. Então, quando minha mãe faleceu, ela mal conseguia disfarçar a própria alegria. Como se uma rival tivesse desaparecido do seu caminho. Tem um nome pra isso não é? Algo da psicologia.

- Síndrome de Elektra. Freud explica...

- Nem Freud conseguiria explicar o que aconteceu depois, meu bem. Meu pai, desesperado, passou a beber diariamente. Todo santo dia ele bebia até cair. Até que em certa ocasião, a minha irmã vestiu as roupas da minha mãe e se deitou com ele. Até o mesmo perfume ela usou. O meu pai acordou confuso de madrugada. E você pode imaginar o que aconteceu. Quando meu pai se deu conta do que tinha feito, saiu de casa com o carro, logo pela manhã. Encontraram ele morto no fim da tarde. No meio de um canavial.

- Meu Deus... Sinto muito, Glória.

- Não sei se isso é coisa do diabo ou não, mas se não existe uma condenação eterna pra algo como esse, eu não sei se Deus é tão justo assim.

- Não sei o que dizer, querida. Sinceramente não sei.

- Enfim... eu resolvi não esperar pela justiça de Deus ou do diabo...

- Você matou sua irmã?

- Não cheguei a esse ponto. Não consegui... Enfim... Mas tenho quase certeza que vai ser um pouco mais difícil pra ela conseguir se deitar com outro homem. Depois disso, passei a beber, andar pelas ruas... procurando algum destino, sabe?

Carlos se levantou da cadeira e se deitou na cama. Glória deitou-se do seu lado e aninhou a cabeça em seu peito. Os dois ficaram em silêncio até que ela começou a chorar.

Chorou por um bom tempo, e então caiu no sono.

O telefone do quarto tocou logo depois.

Carlos se levantou e atendeu.

- Sr. Carlos, desculpe incomodar. – Uma voz feminina murmurou.

- O que foi?

- A polícia está aqui na porta.

Ele ficou calado, como se considerasse a situação.

- Não é para o senhor... estão procurando uma mulher chamada Glória – A voz continuou.

- Eu sei - ele disse.

- Ela está ai com o senhor?

- Sim.

A mulher se calou do outro lado e Carlos continuou.

- Ela vai descer em alguns minutos.

Carlos desligou o telefone e foi até a cama.

Glória dormia o sono dos justos. Não havia nenhuma dor, nenhuma culpa ou preocupação em sua face.

Carlos quase teve inveja disso.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 01/08/2023
Código do texto: T7851170
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