O Pote
O quarto estava vazio. Não havia ninguém enrolada nas cobertas pela manhã para que eu insistisse que acordasse. Nem para deitar ao lado e conversar em uma tarde de domingo, falando sobre minha semana enquanto ela contava histórias do passado. Ela se foi há duas semanas. Era difícil entrar nesse quarto onde minha mãe dormia, mas precisava ver o que ficaria para mim e o que iria para doação.
Abri o guarda-roupa. Lá estava pendurada aquela camisa que ela gostava de usar porque era meia manga e cobria a mancha que tinha no braço. As blusas que guardava para ocasiões especiais, as três calças jeans, sendo uma delas flaire, que ela chamava de boca de sino. A princípio ela não gostava muito dessa calça, mas com o tempo acabou sendo sua preferida, porque cobria o tênis. Lá no canto estava o tênis, as sandálias e alguns sapatos com um saltinho. Esses últimos ela já não usava há algum tempo. O chinelo de ficar em casa que ela adorava porque cobria a joanete. Na porta do meio estava o edredom, o cobertor e o travesseiro. No meio o secador que ela insistia para que eu também usasse, os livros velhos que há tempos ela não lia e sempre dizia que precisava doar, uma caixa de sapato com contas e comprovantes, pentes, escovas, a caixa com os itens para fazer as unhas e outra com botões, linha e agulha que ela guardava para uma emergência; mas como sempre odiou costurar nunca usava, quando era preciso ia até a costureira da rua que fazia pequenos consertos. Fui para as gavetas onde achei as meias, roupas íntimas, mais algumas blusas, blusas de frio e o pijama. Na última porta havia apenas caixas de documentos importantes, fotos antigas e uma caixa grande que nem sabia que existia. Me sentei na cama, abri aquela caixa e comecei a olhar item a item. Encontrei cartas de amor que meu pai escrevia para ela quando ainda namoravam. Não imaginava que meu pai fosse do tipo romântico... Meus boletins da escola, desde o pré-primário. Meus “diplomas”. Todos os presentes que fiz na minha época de escola nos dias das mães, como o cartão em forma de coração, o porta joias enfeitado com pedaços de papel, a borboleta de cartolina que fizemos as asas com lenço. Lenço esse que ela exibiu por muito tempo no pescoço... Observei um objeto que me chamou muito a atenção e não lembrava de sua existência. Um pote de vidro todo decorado. Coloquei a mão na boca, comecei a soluçar e meus olhos se encheram de lágrimas.
As lembranças vieram a tona. Eu devia ter mais ou menos uns dez anos, havia chegado em casa chorando, porque alguns meninos da escola me chamaram de tchonga. Minha mãe, como sempre, percebeu minha cara de choro e perguntou o que tinha acontecido. Depois de contar meu drama ela disse que os meninos eram uns bobocas e que eu não devia me preocupar com o que eles diziam. Se eu ignorasse e não demonstrasse me aborrecer eles esqueceriam. Falou que minha vida não era ruim. Foi até a cozinha, trouxe um pote vazio e um pedaço de cartolina que cortou em tiras. Eu olhava com cara de interrogação. Ela começou a me explicar:
- Esse é o pote do agradecimento. Todos os dias pela manhã, você escreve um motivo pelo qual é agradecida. No dia em que estiver se sentindo a pessoa mais infeliz do mundo você tira um papel.
-Mas todo dia? É muita coisa.
- Não é não. Quando começar você vai ver. Mas o que acha de decoramos esse pote para deixá-lo mais bonito?
Confirmei com a cabeça e fui até meu quarto pegar fitas, cola, adesivos, canetinha e tudo o que eu achava que ia servir.
Minha mente voltou para aquele quarto vazio. Comecei a tirar os papéis de dentro do pote. Encontrei frases como: “meus pais” , é isso não posso mais agradecer porque não tenho mais eles comigo, “minha vida”, “minha casa”, até aí beleza. .., “o totó”, é, esse também morreu... Será que se eu voltasse a usar o pote encontraria tanta coisa assim para ser agradecida? Tomei uma decisão: tirei todos os papéis de dentro, guardei-os em um plástico, coloquei o plástico na caixa e deixei o pote na pilha de coisas que iria ficar. Terminei a arrumação. Deixei o pote, alguns pedaços de cartolina cortada e uma caneta no meu criado mudo.
No dia seguinte acordei aborrecida com o alarme de celular, teria de trabalhar e estava moída tanto física quanto emocionalmente. Me deparei com os objetos deixados lá no criado mudo e a primeira coisa que fiz foi preencher a cartolina, dobrar e colocar no pote. Passei a repetir esse ritual todos os dias.
Se passou mais de um ano em que minha vida se resumiu a trabalhar, cuidar da casa, ir ao pilates duas vezes na semana e sair com minhas amigas ao final de semana. Apenas de vez em quando as lembranças voltavam para me perseguir.
Naquela manhã mal havia chegado no trabalho e fui chamada ao RH. Corte de gastos, eles disseram. Não entendi porque eu havia sido escolhida. Pedi explicações que não vieram. Tive de ficar até o final do expediente e ver as pessoas cochichando. Ninguém mais foi chamado. Que corte é esse em que só eu fui demitida? Arrumei minhas coisas no final do dia e recebi abraços falsos. Acho que até vi o risinho contido da Camila, ela sempre quis meu cargo.
Quando cheguei em casa joguei a caixa com os objetos que trouxe do escritório na mesa da sala de jantar, sentei no sofá com a cabeça afundada entre minhas mãos e chorei. Às vezes socava o sofá com raiva. O que eu faria agora? Tudo bem que tinha o seguro desemprego e algumas economias, mas isso não dura muito tempo. Estive quinze anos naquela empresa, não sei como está o mercado lá fora. Eu já estava com mais de quarenta também. Parecia que eu tinha entrado em um labirinto e não encontrava a saída. Lembrei do que minha mãe disse há tantos anos. Fui até meu quarto e abri o pote. Fechei os olhos e coloquei minha mão lá dentro procurando o fundo. Peguei o papel e abri. Lá estava escrito: “Sou grata pelas vezes em que as coisas deram errado e tive de mudar a rota.” Sorri, enxuguei as lágrimas e fui fazer a janta.