Aleluia, o Monólogo do Diabo

Era madrugada. A casa estalava como de costume, sem poder importunar o sono de quem ali habitava. Os pensamentos dele já o faziam. Aos poucos o sono morria; às vezes abria os olhos repentinamente em razão de um pesadelo. Forçava-se a dormir, as imagens se formavam: rostos, correntes, mensagens, mãos, sorrisos, monstros. Uma voz que ecoava “você é ruim”. E abria os olhos de novo, com raiva e indignado. O coração disparado, quase na garganta; o pulmão ardendo, trabalhando além dos limites. Os nós dos dedos doendo de tanta força empregada para apertá-las; a mandíbula à beira de trancar de uma vez, de tanto ranger os dentes. Há um turbilhão de sentimentos, que o coração não consegue distribuir da forma correta nem o estômago consegue digerir.

– Mais uma noite isso... – pega o relógio e vê que falta pouco para as cinco da manhã.

Abre a janela mais próxima e olha para o céu escuro. A mão ainda está trêmula depois do último pesadelo, mas não era medo, era raiva; só queria dormir e o cérebro ficava ali perturbando. Recorreu ao auge de sua indignação ao olhar para um ponto qualquer no céu e resmungar:

– Quem é o astro infeliz que está retrógrado? Me deixem dormir, caralho!

Voltou os olhos para o quarto escuro, fechou a janela atrás de si e tornou a se deitar. Fechou os olhos e tudo novamente. O processo de releitura dos próprios pecados em alto e bom som. Sentiu um arrepio; o coração arrancou; seus olhos lhe mostravam a mesma cena de sempre, o mesmo momento exato; o coração socava-lhe a caixa torácica; a respiração pesava, com inspirações duras e expirações com a força de um fole; o coração já não possuía mais ritmo e batia descompensadamente; o suor enxarcava o travesseiro e as roupas; o coração pararia a qualquer instante; e aquela voz falou ao ouvido dele. O coração deu um salto.

Ele acordou com a mão no peito, doía. As mãos tremiam, os olhos ardiam. O pesadelo continuava em sua mente acordada. Apertou a cabeça com as mãos, pedindo para parar. Implorando por paz. Precisava dormir. Precisava descansar. Precisava esquecer.

– Não dá para esquecer. – a voz falou e ele sentiu um arrepio maior.

No quarto escuro, a silhueta de alguém sentado numa cadeira encarando-o. Ele paralisou. Queria imensamente procurar um interruptor, o celular, uma vela, qualquer coisa que acendesse uma luz e mostrasse que aquilo era uma pilha de roupas amontoadas num canto.

– Maldita mania de dormir no escuro, não é mesmo? – ele pensara isso e a silhueta, como se ouvisse seus pensamentos, falou e riu.

Riu como um... Ele não teve coragem de pensar a palavra, ele não tinha coragem de mais nada. Era um delírio ou um pesadelo. Sim! Um pesadelo! Um pesadelo tão real, que ele estava preso. Daqui a pouco acordaria e voltaria à sua vida. Daqui a pouco a sombra falante pularia nele e o mataria e então acordaria.

– Não, não, não. Não vou fazer nada disso. Deixa o tio te ajudar. – houve um estalo e a luz do quarto acendeu; havia um homem sentado de pernas cruzadas na cadeira, usava calça preta, uma camiseta preta e, por cima, uma camisa social branca aberta; a pele morena, corpo esguio e pés descalços; cabelos despenteados; e os olhos vermelhos como sangue no piso. Ele sorriu para o rapaz que continuava sentado na cama. – Boa noite, querido.

O rapaz não disse nada. Tremia como uma bandeira ao vento. Não bastasse o pânico que sentia pela situação como um todo, os olhos flamejantes do convidado intruso o encaravam com divertimento; um olhar feroz de fome, o olhar que a fera lança à presa quando está certa de que vai se alimentar.

Um movimento rápido, o homem pareceu se jogar na direção do rapaz, que engoliu a respiração e se deixou cair na cama com os olhos fechados. Abriu-os ao ouvir a risada do homem.

– Isso é sempre divertido. – disse o homem passando a língua nos lábios. – Vamos! Não tenho tempo para isso! – ele gesticulava teatralmente. – Você queria respostas e eu quero dá-las. Tire três cartas. – sem qualquer explicação, o homem tirou um baralho do bolso e o abriu em leque ao rapaz.

O rapaz sentou-se na cama e encarou o homem, que lhe devolveu o olhar com arrogância. Assim, o rapaz pegou as três cartas: primeiro, um seis de espadas; depois, um valete de paus; por fim, um nove de ouro. O homem sorriu.

– Você acredita nessas coisas? – mais uma risada e ele se sentou na cadeira novamente.

– Quem é você e como entrou aqui?

– Eu sou o que há de mais perto entre os homens e os demônios. E eu entrei aqui, por isso aqui. – o homem, num piscar de olhos, como se a realidade cortasse, apareceu na frente do rapaz e tocou-lhe o meio do peito com o dedo indicador. – Isso aqui me trouxe. Todo o fel que ele bombeia. Todo rancor que ele guarda.

– Vo-vo-você é um demônio?

– Não um... Eu sou O... O seu de estimação. Vocês têm o anjo da guarda e o Cão de estimação. – ele riu alto e sonoramente.

– E o que você quer de mim?

– Ah, seja criativo. – num corte de realidade, ambos estavam num consultório psiquiátrico, o rapaz deitado num divã e o demônio sentado em uma cadeira com um caderninho na mão. – Estou aqui para ouvir seus problemas e receitar uns remedinhos.

Puxou a folha do caderno e entregou-a ao rapaz, nela continha a seguinte lista: 12 palavrões de meia em meia hora, para o estresse; 1 cabeça de bode e 1 virgem na primeira noite de lua da primavera, para o “atraso”; 1 trezoitão, para o tédio!

– Meu caro, eu sou o mal encarnado. – já estavam no quarto novamente, o ex-anjo sentado ao lado do rapaz, com os braços passados por seus ombros. – Mas vim para lhe trazer respostas...

– E que respostas...

– I hear there was a secret chord, that David played and it pleased the Lord… But you don’t really care for music, do you? – o rapaz entendeu o peso daquelas palavras. Você quer uma resposta? Sim. Quer algo que lhe traga algum conforto, não importa o custo. Quer que a dor passasse. Quer que tudo só funcione com sempre funcionou, como sempre e como antes. E, com isso, você deixou de se importar. Você não quer o caminho, você quer chegar. Quer o atalho... It goes like this: the fourth, the fifth! The minor fall, the major lift! The baffled king composing… Você sabe o que isso significa? É indiferente a lição, você quer a nota. A fórmula mágica para que todas as dores passem, porque você é demais para perder tempo com essas coisas de lições e caminhos e jornadas e degraus. Você não tem tempo. Você é um deus! Arrogância burra. E olha que eu sou o pai da arrogância. E, sendo arrogante como você é, se perdeu... Acreditou estar a salvo, acreditou que saberia lidar e controlar tudo. Você tinha tanta fé em si mesmo, não tinha? Your faith was strong, but you needed proof, você acreditava, mas precisava de um desafio maior, não era? You saw her bathing on the roof, her beauty and the moonlight overthrew you.

O demônio se levantou e parou em frente ao garoto com um olhar de supremacia.

– E tudo o que você fez em vão se voltou contra você. O que você ganhou mesmo? She tied you to a kitchen chair! She broke your throne and she cut you hair! And from your lips she drew the… Você perdeu, meu caro. E perdeu porque foi arrogante. Esqueceu da regra mais importante do jogo: nunca subestime um inimigo.

– E... Eu...

– Vai contestar? Você tem coragem? Você sabe de uma coisa? Deixemos a noite te responder. – o demônio esticou a mão para a janela que se abriu com força; pegou o garoto pelo pescoço e pulou para o lado de fora com ele.

O rapaz sentiu uma lufada de vento e, de repente, os dois estavam no telhado. O demônio encarava céu escuro com alegria.

– Um dia eu fui expulso de lá. – ele apontou para cima. – Todo mundo tem que perder alguma coisa para ser melhor. Maybe there’s a God above. E talvez Ele olhe para nós agora e saiba que tirar de nós é uma forma de nos dar algo. Será que Ele pensa assim? Será que você acredita nessa idiotice? As for you, all you ever learned from love is how to shoot someone who outdrew you. But it’s not a cry that you hear at night; it’s not somebody who claims to have seen the light; it’s a cold and it's a broken... – os olhos do demônio fumegavam. – Acho divertido isso que vocês sentem. Essa vontade eterna de serem destruídos. De se refazerem e se destruírem novamente.

– Pessoas dão sentido à vida... – disse o rapaz com dignidade.

– Ah, pelo amor de... D’Ele... Sério? Pessoas dão sentido à vida? Viver em guerra dá sentido à vida? Tá certo. Depois fica sem dormir e a culpa é minha.

– Você não entendeu...

– Ah, eu entendi... Eu entendi muito bem. I’ve been here before, I know this room and I’ve walked this floor. You used to be alone before you knew me... – novamente ele apontou para o peito do rapaz. – Faltava algo, mortal? Faltava aquele calorzinho que faz você se encolher, né? Faltava esse sentimento de estranheza e medo que te dá toda vez que uma pessoa fala algo relacionado a qualquer forma de intimidade, né? Faltava esse frio na barriga que sobe ao peito e você recua em si mesmo, arrepia até os ossos e se retrai em sua torre, né? Faltava você não ter nada e perder tudo, não é campeão? Faltava essa guerra perdida. – um sorriso sarcástico surgiu no rosto dele e, com força, virou o pescoço do rapaz para o céu. – I’ve seen your flag on the marble arch... Love is not a victory march! It’s a cold and it’s a broken… – e, então, ele mesmo contemplou o céu.

– Eu sei de tudo isso. Que eu falhei. – o demônio ainda contemplava o céu, sem dizer qualquer palavra. – Mas fiz com boas intenções. – com um olhar do homem mais velho, o rapaz recuou. – E você quer que eu faça o quê? Vingança?

– Não. Isso é o que você quer. Você quer estar bem consigo, devolvendo o mal que te fizeram. E quer fazer isso se considerando uma pessoa boa. A conta não bate. É por isso que eu estou aqui. There was a time you let me know what’s really going on below, but now you never show it to me, do you? Eu vim ver como você está. E arrancar de você uma confissão. Vamos lá...

– Eu...

– Seja sincero.

– Eu não sou uma pessoa ruim... – o demônio, então, tomado por uma ira única, acertou-lhe o peito com indicador e o inquiriu com ódio, atingindo-lhe o peito à cada palavra dita.

– AND REMEMBER WHEN I MOVED IN YOU! THE HOLY DARK WAS MOVING TOO! AND EVERY BREATH THAT WE DREW WAS… HALLELUJAH!!!

– HALLELUJAH!

– HALLELUJAH! – disseram os dois em uníssono. E um frescor passou por dentro do peito do rapaz, uma sensação de alívio, ao que ele disse, em tom baixo e alto o suficiente:

– Sim, eu sou uma pessoa ruim e eu perdi.

– HALLELUJAH!!! – o grito do Diabo fazia tremer as paredes e reverberar nas casas ao lado. Um olhar de triunfo recai sobre o rapaz no espelho.

Já não há mais ninguém, além do rapaz parado diante do espelho.

– I’ve done my best, I know it wasn’t much. I couldn’t feel, so I learned to touch. I’ve told the truth, I didn’t come here to fool me… And even though it was went wrong, I’ll stand right here, before the Lord of Song, with nothing on my tongue but…

E o rapaz se deita para dormir. As imagens voltando para lhe atormentar; as vozes voltando para lhe sentenciar; mas estava tudo bem, ele não ia mentir, era uma pessoa ruim, mas não tinha mais nada a se fazer quanto a isso, a não ser dizer: aleluia...

João V Zibetti
Enviado por João V Zibetti em 22/07/2023
Código do texto: T7843175
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