Airbag
Era terça feira. Véspera de feriado. Não lembro exatamente qual. Saí de casa sem destino como quase sempre eu vinha fazendo. Parei num bar vazio e pedi uma cerveja.
Na verdade, o bar não estava exatamente vazio. Havia um casal discutindo perto do banheiro. O cara estava sentado numa cadeira de plástico e a mulher em pé bem em frente a ele. Parecia que ele estava sendo massacrado. Quase dava pra sentir o cheiro da frustração dele no ar.
O cara se levantou bruscamente e bateu a mão espalmada sobre a mesa.
A mulher se calou e ficou o encarando, como se estivesse surpresa.
- É muito fácil pra você, me colocar a pecha de emocionado, quando na verdade você não tem responsabilidade emocional alguma. – Ele disse como se tivesse escolhido cada palavra com cuidado antes de falar.
- Ah. Então a culpa é minha, não é?
- Não estou nem aí pra quem tem a culpa ou não. Eu só quero que você me deixe em paz. De um jeito ou de outro.
- Eu vou deixar então...
- É um favor que você me faz.
O cara meteu a mão no bolso, arrancou a carteira e puxou uma nota de cinquenta reais.
Deixou sobre a mesa e saiu do bar sem sequer olhar pra trás.
Não foi algo bonito de se ver, mas ele saiu mantendo alguma dignidade. Aquilo eu podia respeitar.
A mulher entrou no banheiro e retornou depois de alguns instantes. Lavou o rosto e retocou a maquiagem em frente ao espelho do lado de fora.
Quando terminou, ela voltou para a mesa, pegou os cinquenta reais e colocou dentro da bolsa.
Ela ficou parada encarando os copos sobre a mesa, e só então percebeu que eu a estava observando. Constrangido, desviei o olhar e foquei no copo solitário bem a minha frente.
A mulher andou em minha direção e falou olhando diretamente para mim.
- Triste não é?
- O quê? – Respondi fingindo que não sabia do que ela estava falando.
- Cenas como essa que você presenciou.
- Olha moça. Acho que todo mundo já passou por algo assim em algum momento da vida.
- Eu passei por mais vezes do que consigo contar.
- Então algo deve estar errado mesmo.
- Profundamente errado. – Ela murmurou, sentando-se uma cadeira bem ao meu lado.
- Você quer uma cerveja? – Perguntei.
- Aceito. – Ela respondeu com um sorriso amarelo.
Fiz um sinal e o garçom trouxe mais uma garrafa e mais um copo.
Enchi o dela e o meu e bebemos em silêncio.
- Obrigada. – Ela disse, depois de tomar um gole.
- Por nada, moça. – Respondi, sem saber mais o que poderia falar.
- Meu nome é Melissa. Mas pode me chamar de Mel.
- Bonito nome.
- E o seu?
- Rômulo.
- Ah. Bonito também.
Dei um sorriso sem graça e voltamos ao silêncio.
Mel meteu a mão na bolsa e tirou um cigarro. Acendeu e fumou calada.
- Vocês são casados? – Perguntei, depois de alguns instantes.
- Eu e ele? Ah. Não exatamente. Tínhamos algo parecido... Algo meio problemático demais pra dar um nome.
- Então deve ter bastante tempo.
- Uns três anos.
- Entendi.
- Mas o problema não é o tempo. O problema é ele... O problema sou eu. É a cama. É a bebida. Um monte de coisas.
- Sinto muito, Mel.
- Não sinta. Acho que saímos do controle já tem um tempo. Estávamos tentando voltar. Mas claramente não tem como dar certo.
- Talvez com algum diálogo vocês resolvam.
- Meu bem. Tem coisas que conversa não resolve.
- Tipo o que?
- Ah. Falta tato da parte dele, sabe?
- Tato?
- É. O homem tem que saber o tipo de mulher que tem consigo. Não dá pra ser vegano e querer ter um tigre dentro de casa sem dar carne pra ele.
- Você podia ser um pouco mais específica.
- Então. Às vezes eu queria que ele me tratasse como uma mulher... Só como uma mulher. E não como um objeto de afeição. Como um vaso pro sentimento dele.
- Você se incomoda que ele te ame?
- Talvez eu me incomode com a forma que ele me ama. Às vezes eu quero só a carne sabe? A carne, o suor, o tesão, o desejo. Na cama, eu prefiro ser uma puta do que uma princesa.
- Estou entendendo.
- E você? É casado?
- Não. Não tenho alguém faz algum tempo.
- Você é sozinho então.
- Eu nunca estou inteiramente sozinho. Mas não sei se tenho o que é preciso pra estar com alguém numa relação convencional.
- O que te falta?
- Boa pergunta.
Mel sorriu e tomou um gole de cerveja.
- Você vai encontrar com alguém hoje de noite?
- Não tenho nada marcado com ninguém.
Ela esvaziou o copo, se levantou e falou.
- Vem comigo!
- Pra onde?
- Quero te mostrar uma coisa.
- Tem certeza que não vai causar nenhum problema.
- Não estou preocupada com isso. Você está?
Fiquei alguns segundos em silêncio, encarando o copo vazio que ela tinha deixado sobre a mesa.
- Tudo bem. – Murmurei.
Me levantei da mesa e fui até o balcão caminhando ao lado dela.
Depois que paguei a conta, ela falou.
- Moro aqui perto. Podemos ir andando se você quiser.
- Vamos então. Não me incomodo de andar um pouco.
Caminhamos por quase um quilômetro. Ela passou a maior parte do caminho em silêncio, fumando um cigarro atrás do outro.
Paramos na frente de um prédio baixo, desses de tipo caixão. Ela meteu uma chave no cadeado e abriu a grade. Entramos e seguimos pela escada. Ela morava no terceiro andar. Apartamento 304.
Tinha um vaso com uma espada de são Jorge com as folhas queimadas por falta de luz bem na frente de sua porta, ao lado de um tapete preto escrito “Welcome”.
Ela abriu a porta e entrou. Eu ainda estava ofegante pela subida, mas ela parecia muito melhor do que eu nesse sentido, apesar de ser fumante.
Mel jogou a bolsa em cima do sofá e acendeu as luzes.
- Pode sentar aí. Me espera que eu já volto.
Eu sentei no sofá e esperei com as mãos escondidas entre as minhas pernas.
Ela entrou na cozinha e voltou depois de um tempo com uma garrafa de vodka e dois copos cheios de gelo. Encheu os dois e me entregou um.
Ela tomou um gole e foi até um rack bem de frente ao sofá onde estava uma vitrola dessas moderninhas que parecem uma maleta. Ela abriu o aparelho e botou um disco pra tocar.
‘Ok Computer’ – Radiohead. Me surpreendi pela escolha. Mas de forma positiva.
- Conhece? – Ela perguntou.
- Sim. Gosto bastante. Mas só tenho em mp3 mesmo. Nunca encontrei um vinil deles.
- Você também coleciona?
- Tenho uns tantos em casa. Gosto de coisas obsoletas. Só não tenho uma máquina de escrever por que não teria paciência de usar.
Ela sorriu e se sentou ao meu lado no sofá.
- Você parece o tipo de cara que sabe aproveitar uma mulher.
- Como você chegou a essa conclusão?
- Vamos dizer que eu tenho um talento pra reconhecer esse tipo de coisa. – Ela disse olhando diretamente nos meus olhos.
- Tive minha cota de boas experiências nesse sentido... E de experiências ruins também.
- Você se expressa como se fosse um soldado voltando de uma guerra. Sobreviveu, mas deixou pra trás um pedaço de si.
- Talvez seja exatamente isso.
Ela sorriu novamente, se levantou e ficou de pé bem na minha frente.
Afastou as alças do vestido, que caiu no chão, deixando o seu corpo todo exposto.
- Eu quero um pouco disso. – Ela falou.
-Disso o que?
- Quero essa sua dor dentro de mim. Quero ser algo passageiro. Um meio de fuga... Algo que não vai se repetir.
Me levantei e puxei ela pra perto. Eu tinha vários questionamentos. Tinha várias coisas passando pela minha cabeça naquele instante. Mas sabia que não havia espaço para nada daquilo no momento. Nos beijamos e ela começou a arrancar a minha roupa.
Ela parecia um tipo de animal selvagem recém-saído de uma jaula. Havia algo de febril nela. Algo quase doentio. Me afastei um pouco para respirar e a peguei de costas, pressionando o seu corpo contra o sofá. Ela gemeu alto como se estivesse pouco se fodendo para os vizinhos.
Em alguns minutos, eu já estava me segurando para demorar um pouco mais de tempo dentro dela. De alguma forma ela percebeu que eu estava quase lá e se desvencilhou de mim. Caiu de boca em mim como quem está desesperado por um copo de água. Não demorou muito e eu lhe dei tudo o que tinha.
Ela me encarou, sorrindo. Tomou um gole de vodka e me puxou pelas mãos para o quarto.
Caí sentado na cama, buscando recuperar o fôlego. Mel abriu o armário, tirou um cinto de couro e jogou no meu colo.
- O que é isso? – Perguntei.
- Um cinto, ora.
- Isso eu sei... Mas e dai?
- Eu quero que você use em mim.
- Sério?
- Claro.
- Não estou muito acostumado com isso.
- Não tem problema, meu bem. Você pode até não saber pelo que está me batendo, mas eu vou saber exatamente pelo que estou apanhando. – Ela falou com a face carregada de lascívia.
Então, Mel se colocou de quatro sobre a cama, olhou para trás e mordeu os lábios.
Sem saber exatamente aonde aquilo iria me levar, eu me levantei e enrolei o cinto na minha mão direita. Da primeira vez que bati, ela quase não reagiu. Aumentei a intensidade na segunda vez, a ponto de ver uma marca vermelha surgir na sua pele. Ela gemeu baixinho e abriu mais as pernas. Eu vi o paraíso olhar para mim e percebi que tinha novamente uma ereção no meio das minhas pernas.
Bati mais uma vez, e ela aproximou mais o corpo do meu.
Não resisti e dessa vez entrei nela com toda a força que eu tinha. Sem me preocupar se ia durar muito ou pouco tempo.
Na verdade eu perdi a noção do tempo enquanto me forçava para frente e para trás.
Larguei o cinto de lado e continuei estocando. Era uma guerra. Um massacre. Eu contra o mundo. Eu contra o meu passado. Eu estava vencendo finalmente.
- Isso... Assim mesmo! – Ela gritou, exasperada.
Fechei meus olhos e logo estava tudo acabado.
Caímos os dois na cama, com as pernas entrelaçadas. Mel suspirava e sorria, enquanto eu procurava meu fôlego perdido.
- Eu tenho um talento pra isso, não falei? – Ela murmurou.
- Falou. – Eu respondi, ainda quase sem ar.
Ela se sentou na cama e amarrou os cabelos no topo da cabeça.
- Ah. Eu quase me esqueci de te mostrar...
- O que?
Ela abriu uma gaveta no criado mudo e puxou um livro. Acendeu a luz de cabeceira e eu pude ver com clareza do que se tratava.
Reconheci a minha foto na parte de trás.
- Não te reconheci de primeiro momento, mas quando você disse o seu nome eu soube que era você. – Ela falou.
- Você comprou meu livro?
- Ganhei de presente.
- Só mandei imprimir cem cópias dele. Vendi quase todos pra amigos e conhecidos.
- Pois é. Ganhei ano passado, de uma amiga. Ela me falou muito bem do livro.
- Agora estou entendendo.
- Fiquei curiosa para saber se você era igual nos textos e na vida real.
- E chegou a alguma conclusão?
- Ainda não. Talvez eu precise de mais tempo. – Ela falou se levantando da cama.
Fiquei observando enquanto ela puxou um roupão de seda e uma toalha do armário.
- Ótimo. Até amanhã, eu tenho todo o tempo do mundo. – Murmurei.
Ela sorriu e caminhou até o banheiro.
“In an interstellar burst
I´m back to save the universe”
Eu a ouvi cantarolar até que sua voz fosse abafada pelo barulho do chuveiro.