Regressão: Bruxa? Deusa? Mulher Sábia

Sou filha de uma escrava mestiça e de seu senhor que a pegou a força sem nenhum escrúpulo. Para ele, ela não passava de uma propriedade que podia dispor e usar como bem entendesse. Nasci em 1728.

Fui escrava dele por muitos anos, mesmo ele sabendo que era sua filha. Até que, quando eu tinha dezoito anos, em seu leito de morte ele me alforriou.

Continuei vivendo com minha mãe até que aos vinte e dois anos me casei com um feitor muito bom que foi contratado para trabalhar na fazenda. Continuei morando perto de minha mãe e sempre aprendi com ela as rezas, benzeções, chás, remédios caseiros feitos de ervas e as chamadas garrafadas que curavam quase todas as doenças, cada uma com sua erva certa.

Pouco depois da morte de minha mãe, meu marido foi despedido de suas funções e mudamos pra cidade.

Eu continuei fazendo tudo que minha mãe me ensinou. Orava, benzia as pessoas, fazia chás, remédios e garrafadas e as pessoas ficavam curadas dos males físicos e espirituais.

Tinha em minha casa o meu cantinho com minhas ervas, minhas imagens de santos e orixás, terços, búzios que jogava para as pessoas que me procuravam.

Eu fui ficando conhecida nessas funções e todos me procuravam, o que despertou o ciúme e inveja do médico que trabalhava na cidade.

Tentava de todas as maneiras me proibir de exercer minha arte de benzer e curar.

O padre chegou a me proibir de fazer aquelas coisas, mas as pessoas protestaram e tanto fizeram que ele recuou.

Muitos diziam que eu era bruxa. Muitos outros diziam que eu era, santa ou deusa ou orixá. Mas eu era apenas uma mulher que aprendeu com minha mãe a sabedoria e a forma de benzer e usar as ervas para o bem das pessoas.

Eu jamais fiz mal a ninguém, tudo que fazia era para ajudar as pessoas, não havia nenhuma heresia em nada que eu fazia.

Quando eu estava com trinta e sete anos, chegou à cidade um tal de inquisidor, diziam que vinha de Portugal para apurar algumas denúncias sobre judeus que viviam aqui e também curandeiros e feiticeiros que julgavam hereges.

Eu continuei minhas atividades sem me dar conta de que o que eu fazia poderia ser considerado heresia.

E alguém me denunciou e vieram me buscar para me submeter a um interrogatório. Queriam que eu confessasse que praticava feitiçaria, que era um bruxa e que me arrependesse.

Eu era ingênua e despreparada para enfrentar aquelas pessoas tão más e nefastas.

Eu me recusava a confessar algo que nunca fiz. Nunca pratiquei a feitiçaria e nunca fiz mal a ninguém. Eles me torturavam pra eu confessar o que queriam ouvir. Eu me recusei. Não ia mentir diante daqueles monstros.

Depois de vários dias de tortura, de ser tratada a pão e água me colocaram em uma masmorra com o pé amarrado a uma corrente.

Eu estava ferida e fraca.

No primeiro dia não me trouxeram comida e nem água. Eu estava faminta e com uma sede insuportável.

No segundo dia também não pareceu ninguém por lá. Meu estômago doía de fome e minha boca estava seca, eu me sentia seca por dentro.

Mais um dia se passou e eu ali sozinha, morrendo de fome e sede. Comecei a ter febre e calafrios, algumas vezes delirava e enxergava água e comida na minha frente.

Os dias foram passando e eu não conseguia entender como aquelas pessoas monstruosas podiam fazer este tipo de coisa em nome de Deus. O que eles chamavam de heresia eu chamava de caridade.

Eu orava a Deus, aos orixás, a todos os santos para que me salvassem e me tirassem dali por algum milagre.

Pensava nos meus filhos, no meu marido e no quanto eles deviam estar desesperados sem poder fazer nada.

Cada vez mais eu abominava a crueldade daquela gente que se dizia religiosa. Como um ser humano pode submeter outro ser humano a uma indignidade, uma maldade como a que estavam fazendo comigo.

Aquela injustiça me deixava revoltada.

O Deus a que eles serviam não podia ser o mesmo Deus que eu aprendi a seguir com minha mãe.

O Deus que eu conhecia era um Deus de amor, compaixão, tolerância, compreensão.

Cada vez mais comecei a ter delírios. Nem sabia como ainda estava viva.

No sexto dia sem água e comida eu pedia a Deus e aos orixás pra morrer. Não aguentava mais. O lugar estava fétido, eu estava fétida e não suportava mais tanta tortura.

Na manhã do sétimo dia eu tive um delírio ou sonho em que eu estava no alto e via meu corpo inerte no chão. Tentava voltar e ajudar, mas não conseguia. Depois de muita aflição me vi voando livre rumo ao infinito. Ainda sem saber se estava tendo um delírio fui acolhida por mãos gentis e bondosas que me levavam pra longe daquele lugar tenebroso. Eu não sentia mais fome, nem frio, nem sede.

Eu só sentia paz e uma luz suave me envolveu…

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 18/07/2023
Reeditado em 18/07/2023
Código do texto: T7840332
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