Das consequências de mentir (monólogo)

Não faz tempo, sabe, hei, tô falando com você, olha pra mim... isso, que bom. Não faz tempo, coisa de dois anos, três... não sei, na verdade não importa, enfim. Não faz tempo eu descobri que meu pai não era meu pai. É..., assim mesmo, isso, descobri que meu pai, quer dizer, aquele que se dizia ser, e todos também diziam, todos, tio, avó, avô, todos, inclusive, a futriqueira, enxabida da Lindalva, enfim, fui ensinada a acreditar que meu pai, quer dizer, o que se dizia ser, e diziam ser meu pai, não era. Isso mesmo, heim, tô falando com você, você está ouvindo? Ah tá, sei, tá ouvindo com a porra de fone no ouvido! Presta atenção! Tá ouvindo agora? Então tá. Como ia dizendo, descobri que meu pai não é meu pai. Se foi um choque? Claro, criatura! Como você reagiria, me conta, como você reagiria, afinal não é todo dia, não é comum, descobrir que seu pai não é seu pai, você, aí, todo pavãonoso, todo senhor de si, inabalável, intocável, insensível, como, me diga, como você reagiria ao descobrir que por muito tempo, por muitos anos, você foi enganada?

Pois é, pois é, sem resposta né? Fala criatura, fala, como você reagiria? Entraria em choque ou ficaria assim, tipo Madona, vai, fala. Foi o que pensei, não faria nada. Não faria nada porque não há nada pra fazer, não é He Man?

Então, o que se há de fazer, não é? O que fazer quando se descobre, assim, por um acaso, um deslize do destino, sei lá, por um descuido, de um instante de descuido, de desatenção, de simples acontecimento, assim, um acontecimento banal, um incidente na roda viva da vida, sem grande, não, sem nenhuma importância, como uma espécie de desarranjo, de incongruência, de inabilidade, acontece alguma coisa que, sem que você se dê conta, acontece o que não foi previsto, não foi calculado e sua vida se transforma de tal maneira que você já não sabe mais quem é. Não sabe mais de onde veio, quem são seus parentes, seus amigos. A pancada é tão violenta, tão certeira, tão...sei lá, tão catastrófica que nada, nunca mais, pode acreditar, nunca mais você será a mesma pessoa. Consegue conceber isso? Consegue compreender a profundidade, a profundidade do poço, isso mesmo, do poço que te jogam, assim, sem mais, nem menos? Consegue, diga com toda sinceridade possível, consegue pensar, consegue, por um minuto, um mísero minuto, o que acontece na vida de uma pessoa que foi ensinada que aquele, e não outro, é seu pai, e depois você descobre que nada era verdade. Descobre que todas as ideias e ideais que você construiu a partir da certeza, da falsa certeza, de que ao menos você tinha um pai, tudo se perde, se dilui como a água que se perde no ralo. Consegue pensar, consegue mensurar o caos psíquico que isso causa? Pois é, meu caro, o poço se abriu. O poço se abriu e engoliu tudo o que havia se construído e consolidado como se nada fosse capaz de abalar aquela realidade. E aí, tá me ouvindo criatura!, e aí o que aparece na sua frente, na sua cara, como se a partir daquele instante, daquele caótico minuto, segundo, sei lá, tudo, a partir do instante que você descobre que por muitos anos, tudo que você aprendeu e apreendeu, não passou de mentiras, de falsas certezas. Acha pouco, meu caro? Acha pouco se defrontar com isso e não sentir a abertura do poço? Ora, ora, o que quero? Você me pergunta o que quero? Como assim, o que quero? Você acha, acha mesmo, que tudo se resume a um simples pedido? Como assim, como assim, o que quero? É triste, muito triste, saber que para você tudo se resume a um "o que quero". Essa relação que você estabelece de satisfação de um pedido, acredite, isso não resolve o problema. O problema, você está me ouvindo? O problema consiste em considerar o choque, o abalo, o chaculejar, o treme-treme, enfim, consiste em enteder o que acontece quando se descobre algo que desmonta todo o castelo encantado do pai que não era pai. Entende a dificuldade e, de certo modo, a impossibilidade que isso representa? Consegue alcançar, por um instante qualquer de sua vida, de sua limitada vida, que se resume, e apenas, em adorar esse corpo, e se esquece do que acontece ao lado? Meu querido, triste fatalidade, triste saber, que você parece desconhecer o rebuliço que é se deparar com uma realidade nunca imaginada. Pois sim, pois sim, é isso que acontece. É como se o chão deixasse de existir. É o poço. O poço aparece como uma nova realidade, um novo habitat. Foi o que aconteceu. É isso, He Man. Simplesmente isso, uma nova realidade, porém, uma realidade que seria outra se a surpresa não fosse do jeito que foi. Enfim, virar a página e seguir, não é? Virar, fazer a curva e avançar, nunca fazer o retorno, fazer a curva, subir a serra e seguir, He Man.

Talvez você não saiba, mas por muito tempo se acostumou achar que as coisas são do jeito que devem ser. Se ensinou que a vida acontece do jeito que acontece porque haveria alguma espécie de determinismo, de pré - receita de como tudo se daria. Esse pensamento, em si, algo fatalista, porque, de certa maneira, amarra, impede, qualquer tentativa de ação contrária, de algum modo trouxe questões que desaguaram no Existencialismo. É verdade, não duvide, que ao colocar em debate que não há determinismo, que não há receita pronta para os acontecimentos da vida, que a vida, por si, já é um movimento em permanente se refazer, e nesse movimento, nesse caldeirão de possibilidades, o tema da liberdade (

da liberdade como elemento de ação independente) e com ele o tema da responsabilidade, são, dentre outros, temas fundamentais e fundantes que caracterizam o sujeito, no sentido mais amplo. Nesse aspecto, presta atenção!, He Man, acredito que transparência seja um item que se pode incluir no campo da responsabilidade. Não há, não há possibilidade de haver, responsabilidade sem transparência. Entende isso? Entende o que significa omitir a verdade? Compreende o estrago, o caos, que é você descobrir que ocultar a verdade é algo tão abominável quanto cometer um crime? Alterar de forma caótica, inexorável de sofrimento, a vida de qualquer pessoa, alterar suas crenças, suas referências, assim, sem desculpa, sem justificativa, enfim, alterar uma vida e tudo que dela se projetou, assim, traiçoeira, não é, responde, caríssimo He Man, não é um crime? Se estivesse em seu poder, isso mesmo, como se juíz fosse, se estivesse em seu poder julgar esse comportamento, esse verdadeiro conluio, como julgaria, qual seria sua sentença? Julgaria como um crime ou apenas um acontecimento sem importância, sem grande importância na vida de uma pessoa que, por ter sido enganada por muitos anos, e por ter descoberto a mentira, teve toda sua história de vida revirada como se tivesse dentro de um tornado? Não precisa responder, He Man, seu silêncio ou sua incapacidade de compreender são eloquentes demais. Hora de seguir, subir a serra. Quanto ao pai que não era, apenas a desilusão. Subir a serra, tocar a vida, é o que resta. Juntar os cacos e reconstruir a vida.