As Ervilhas são Redondas

No dia anterior, ele gastara alguns bons minutos para escolher o cardápio do almoço. Dentre quase todas as alternativas do mundo culinário conhecido, poderia escolher. Uma refeição digna dos pachás. Nada de feijão-com-arroz. Nada de sopa com pedaços de galinha desmaiada e branca. A refeição das refeições. Depois de algumas idas e vindas com o pensamento, ancorou num filé ortodoxo. Mas que fosse filé mesmo. Legítimo. Então, lascou: arroz com ervilhas, batatas fritas sem aquele óleo escorrendo. Que sejam secas, crocantes. Um filé. Não um bife. Um filé, daqueles de miolo vermelho, como aparece nos filmes de gente rica. Um filé não. Dois ou três, grandes. E vinho tinto: uma garrafa. Também dois ovos fritos, preservando a gema com o líquido amarelado por dentro. Não é ovo frito amassado na chapa. O cozinheiro ouve os pedidos com os braços cruzados, rabisca alguma coisa no caderno de notas, faz um ar complacente com os olhos. O arroz deve ser soltinho, não é arroz grudado um no outro. O cozinheiro faz que sim com a cabeça. Purê de batatas. Não precisa ser muito. Um pão sovado de quarto. Uma salada com tomate, alface e cenoura. Mas com o prato arranjado: as alfaces saltando para fora da travessa, os tomates rodela sobre rodela e no centro a cenoura cortada bem fininha, com aqueles raladores especiais. De sobremesa, sorvete de creme e chocolate. É isso, obrigado. O cozinheiro se despede em silêncio.

No outro dia, abrem a porta do quarto e o banquete é servido ali mesmo. Aguarda que preparem tudo. Mesa com toalha, talheres, louça. Sorri, satisfeito com a qualidade do serviço. Depois, ele fica sozinho e mastiga cada pedaço da comida com uma vagarosidade entediante. Cada garfada vai com muita demora até a boca. A mastigação é exaustiva. Só engole quando o alimento já se transformou em uma massa pastosa. A língua brinca com as porções. A gema foi perfurada cirurgicamente com o garfo. Em seguida uma fatia do pão sovado amorteceu o sangue amarelado do pinto que não nasceria jamais. Ele pensou nisso, mas não disse a ninguém. Um pouco da gema foi se derramar sobre um conjunto pequeno de arroz com ervilhas, separado previamente a uma borda do prato para esse fim. Ele namorou o branco, o amarelo e o verde. Acomodou um pouco no garfo e levou à boca. Sorria satisfeito. Uma rodela de tomate foi cortada em quatro, e comida em alternância matemática com os fiapos de cenoura e garfadas na montanhazinha de purê. Ele brincava de roer com o garfo a montanha, retirando o purê da base e deixando o topo intacto, ornado com uma salsa verde-escura. Uma árvore na montanha. Os goles de vinho: um a um. Servia meia taça por vez. Goles pequenos, como nunca fizera na vida. Nunca é tarde para aprender. Um pedaço do filé vai ao que sobrou da gema. A vaca morta no pinto não nascido. O aborto prévio nas aves é permitido. Proteínas. Fazem bem à saúde. Outra garfada na carne. Este pãozinho aqui se esborrachando no que sobrou do amarelo. O dedo indicador, o pão e o prato. Agora naquele suquinho da carne. Um pão sovado com gema de ovo e molho de carne. Bom, muito bom. Deixa dissolvendo na boca. Ele não tem pressa. Depois, uma ervilha dançando na colher. Uma ervilha única, primeiro. Depois, mais duas para uma dança silenciosa. As três ervilhas ensaiando um círculo imaginário na colher. Com a mão direita, põe uma delas na boca. Não mastiga, apenas a língua fica brincando com ela. Empurra a ervilha para um lado, para o outro, brinca com a verdinha entre os dentes. Ele estava assim, absorto quando o sujeito aparece, batendo umas chaves de ferro na mão e diz que chegou a hora. Ele limpa a boca com o guardanapo de papel, levanta-se e pensa em dizer:

— As ervilhas são redondas.

Mas para quem?