Viagem inusitada
Injeto-me.
Entro pelas minhas veias e com surpresa descubro que meu sangue não é vermelho, mas de um carmim pesadamente tinto de vinho. Não tenho bebido tanto assim, e a última vez foi cerveja; não sei por que esse rubro violento. Provo: encorpado, tom vibrante, textura aveludada, paladar com personalidade deixando notas residuais de maçã e ferrugem.
Ele me leva diretamente ao cérebro, onde um emaranhado de neurônios confusos estranham-se uns aos outros. Não são apenas Tico e Teco, como eu às vezes imaginei, mas uma profusão deles, debatendo-se em leves choques de cauda e cabeça a revelarem-me idéias jamais imaginadas. Antevejo o fim daquele projeto difícil, a solução da prova na qual fui tão mal sucedida, e uma luz sobre como encaminhar a tal tese. Tem uns escritos lá; uma confusão de frases e parágrafos, que certamente podem vir a fazer sentido se bem orientados. Mas nessa bagunça toda não consigo descobrir como.
Logo abaixo, olho meus olhos por dentro. Vejo que vejo, e isso me leva às lágrimas. Olhos assim lubrificados, pouso por dentro do nariz e percebo como ambos se interligam aos ouvidos e à garganta. Otorrinolaringologista é, portanto, um nome não tão esquisito assim para um profissional que trata de uma área tão complexa: além do tato, todos os outros sentidos se acumulam no rosto, com aparatos que unem de forma perfeita as delicadas áreas internas ao exterior agressivo. E sem que haja detrimento de coisa alguma, a não ser, evidentemente, pelo que às vezes somos obrigados a ver, ouvir e - oh, cansaço! - engolir.
Descendo em direção à garganta, percebo que gostaria de cantar. Mas com essa voz desafinada e atonal não me animo muito. Até que tento: o ar sai do pulmão, passa pela laringe e se desdobra em sons estranhos, que não têm relação alguma com a música de fundo. Lembro-me de João Gilberto e não me esqueço de que no meu peito também bate um coração.
E é para ele que sigo, amedrontada pelo que posso encontrar. E encontro várias câmaras, de tamanhos diversos, e muitas feições estampadas em cada uma. Uma alegria leve se apodera de mim nessa hora; mas de relance vejo num canto uma parte avermelhada demais, como se aranhada – e ela dói. Mercúrio cromo ou Merthiolate? Não. Melhor não mexer. Saio de fininho sem tornar a ver as faces que moram lá.
Inesperadamente, meu diafragma se contrai num soluço. Desço mais.
Passo rapidamente pelo abdômen, sem olhar os excessos que o tempo (e as calorias extras) vêm acumulando na outrora delgada região; esbarro em meu estômago hi-flex, segundo a definição de um amigo a quem segredei algumas de minhas misturas gastronômicas. Visito o abrigo temporário de novos seres, há muito em desuso, e sigo com vagar pelo baixo ventre, admirada pela delicada arquitetura do prazer e agradecendo a Deus por não ter nascido em meio aos costumes bárbaros de certas tribos da África muçulmana.
Desço pelas coxas, obviamente ignorando sua textura, e quando me apercebo das pernas sinto como que um frenesi: elas querem andar. Sempre andar, sempre mais longe, sempre para a frente. Viajar é o grande objetivo delas - impulsionar o corpo todo para lugares novos e desconhecidos, numa busca de aventura que tensiona todos os músculos e consome toda a energia. Mas ao chegar aos pés, percebo como eles estão fincados no chão... Raízes profundas que impedem qualquer movimento mais tresloucado que as pernas porventura queiram dar. Os passos são limitados, quase em círculos, orbitando outros seres sob meu cuidado. E o frenesi de ganhar chão fica adiado sine die.
Saio para fora e me olho da cabeça aos pés. A viagem continua: meto o nariz onde não sou chamada, fico na mão, sinto um nó na garganta e o empurro goela abaixo - meu estômago revira e boto os bofes pra fora. De repente sou toda ouvidos, dou uma mãozinha e carrego o mundo nas costas. Que peso sobre meus ombros... Também meto os pés pelas mãos, curto dor de cotovelo, caio de joelhos, dou a cara pra bater e, claro, fico de queixo caído.
É aí que grito a plenos pulmões: o que os olhos não vêem, o coração não sente.