Você tem razão
- Em que tipo de projeto você tem se dedicado nos últimos meses? - disse Moraes.
- Em nada mais. Eu venho para esse laboratório mais para sair de casa e poder não ver o quão miserável eu sou - retrucou Bonavides.
Moraes e Bonavides eram químicos e trabalhavam em um laboratório de contingência, destes estabelecidos pelo novo governo militar. Os esforços nestes laboratórios eram diligentes para implementação de novas práticas hospitalares, medicamentosas e sanitárias. Estes laboratórios começaram a ser inaugurados em 2093, ano que um golpe de estado foi arquitetado no país para prover soluções ante a suposta ineficiência de políticos civis no colapso que em que o país se encontrava na década de 2090 do século XXI.
-Isso é um absurdo. Você é uma pequena parte da população que consegue ser ativa
intelectualmente e ganha bastante para o provimento das suas função. Eu, por exemplo, tenho tentado desenvolver algo para acondicionamento de medicamentos - esbravejou Moraes.
- Para quê? - questionou Bonavides.
O tempo não foi generoso com o país nem com o mundo. Em 2093, o colapso era iminente. O que sentenciara o mundo não fora a catástrofe climática, o exaurimento dos recursos naturais dentro da lógica econômica ou o acirramento de ânimos geopolíticos reservados para as dinâmicas da segunda metade do século XXI. Poucos imaginariam que a pandemia de COVID-19 destruiria o mundo logo após o seu heptatenário por um motivo pouco sanitário, mas comportamental: o isolamento social.
- Ora, porque o acondicionamento de medicamentos é essencial - retrucou Moraes.
- Hm - murmurou Bonavides.
Na ocasião da pandemia, algumas poucas pessoas jurídicas de direito público e privado de privilegiadas partes do mundo mais desenvolvido elegeram o isolamento social com adaptação digital e doméstica como solução para um problema, sem se atentar que o verdadeiro problema é a humanidade.
- Sem o tratamento adequado para fabricação, acondicionamento e descarte de medicamentos, o ecossistema será ainda mais prejudicado, causando ainda mais prejuízos à vida humana - explicou Moraes.
- E o que tem isso? - questionou mais uma vez Bonavides.
Um planeta que já enfrentava problemáticas demográficas, energéticas e farmacêuticas não conseguiu se adaptar ao déficit intelectual e comportamental gerado pela pandemia. A natural renovação geracional finalmente levou a cabo de maneira massiva e global a última a última geração nascida antes do surgimento da Sars-CoV-2 e suas consequências sociológicas e antropológicas. As gerações nascidas pós-2020 não conseguiram executar as sofisticadas demandas proporcionadas pelos enigmas de um futuro século XXII, assolados principalmente pelos conflitos pela escassa energia elétrica e seus corolários, dado o contexto em que nasceram e que replicaram, representando motivo delével para o mundo.
- Como " o que tem isso"? Você não quer contribuir para salvar o mundo? - finalizou Moraes.
O isolamento social, na verdade, corporificou um problema muito mais sério do ser humano: a compatibilidade entre querer se salvar, mas não querer perecer. A humanidade é a mão querendo sacrificar o resto do braço, sem se atentar que sem braço não existe mão. O ser humano diz valorar o trabalho, mas não consegue compreender a dimensão biológica e física do que é trabalho e se cansa de labutar, sem entender que a labuta é a sua necessidade de sobrevivência em termos biológicos, mesmo que a sociedade política e a economia jamais tivessem sido criadas ou descobertas. O ser humano diz enjeitar comportamentos mesquinhos e perniciosos, mas o faz reiteradamente, se afundando em hipocrisia e se defendo rejeitar os comportamentos, não as pessoas que fazem uso desses comportamentos. O isolamento social representou a hipocrisia humana, que o ser humano não quis superar, porque se superasse ele findaria a si mesmo.
- Salvar para quê? Continuar esse mundo errático para quê? Legar a essas pessoas mais sofrimento para quê? Isso é salvação ou é mais sofrimento? Elas merecem mais sofrimento ou merecem salvação? Enfim, salvar para quê?
- É você tem razão.