LEMBRANÇAS DE UMA MORADA

PARTE I

Onze e trinta da manhã. Sexta-feira. De certo era hora que minha mãe, Dona Fátima, a qualquer momento acabaria de preparar a refeição; já estava pressentindo aquele aroma peculiar: uma graúda posta de corvina composta por um leve assovio refratado pelo alumínio amanteigado da panela. Jamais a mistura de peixe com pirão foi tão apreciada e rapidamente consumida. A verdade é que junto com esses devaneios gastronômicos outros diversos planavam sobre minha cabeça, sempre durante pouco tempo, pois alguém inconveniente e com mania de arrumação, notando algo fora do lugar, enroscava o parafuso que faltava de minha cabeça. Desta vez não foi diferente, com minha mente mais lenta, senti a aproximação de uma figura pelas costas que há pouco estava inanimada, olhei de canto e percebi que estava na sala de aula e num movimento brusco a enxerguei...

--Carlos.

--Sim, professora Sardinha.

--Você está sempre ¨viajando¨. Em que lugar do mundo estava agora ?

--Aceito adivinhações professora. Disse com ar de superioridade.

--Cuidado garoto, o seu precipício está por um triz. Apesar de ter belas notas em geografia, não está livre de uma bela expulsão.

Já havia tido muitos sonhos eróticos com professoras, mas esta era demais, bonita e sarada. Seu corpo me lembrava o de uma sereia. AH! Como adoraria jogar meu anzol!! Como seria o sabor de uma sardinha ensopada de suor ? Acho que nunca vou saber. É melhor eu dar uma resposta logo e me safar desse constrangimento. Foi então que versei:

Conheço as regras professora e prometo que vou melhorar a atenção. E quanto a pergunta, estava em casa comendo um pirão.

Pronto, esta foi a rima da semana e a chave para a porta da rua.

¨Semana que vem volta tudo ao normal¨, pensei.

Estava louco para chegar em casa e ver meu avô Geraldo, sabia que a esta hora estaria capinando a frente da nossa chácara tornando-a mas vistosa e limpa, preparando o terreno para me receber com seu doce sorriso.

Eu sempre tive o prazer de ajudá-lo, pois o achava muito velho para trabalhar, Parkinson que o diga, a doença começou pela sua mão esquerda querendo dominar outros extremos até agora sem sucesso, pois era um lutador, não chegava a ser um Mohamed Ali, mas era bem próximo, lutava contra o tempo, contra Deus.

Deus era o amigo mais próximo de minha mãe, era Deus no Céu e Deus na Terra. Eu até achava que seu amigo a tinha colocado sua vida em segundo plano, porém, Dona Fátima dizia que a fé iria elevá-la ao Reino dos Céus, onde Ele seria o Todo Poderoso e que também a protegeria das constantes pancadas de meu pai.

Bom, quanto a colocá-la em seu reino poderia até ser, porque um amigo sempre leva um outro amigo para sua casa, agora quanto a meu pai, sei não. A todo lugar que ia meu pai, o seu Carlão, estava acompanhado: às vezes loira, às vezes mulata caramelo, porém, sempre com o mesmo nome: ¨Catiaça¨. Ele não escondia de ninguém o seu amor absoluto. Esse romance para sua companheira era o demônio agindo. Não nego, visto que mudava de personalidade quando bebia, acho até que via o próprio Belzebu em sua frente.

Com pedidos lacrimejados de vovô, as violentas investidas e incontroláveis atitudes de meu pai caíam por terra, uma vez que aquele velhinho inteligente era o centro de nossa gangorra.

Não faça isso Carlos, seu filho fala e age como adulto, porém, ele só tem dez anos. Dizia meu avô em máxima potência de sua voz.

E assim a paz que dona Fátima toda noite rogava em suas orações era, momentaneamente, atendida, mas o coração outrora de pedra, agora de vidro de vovô Geraldo era, paulatinamente, arranhado. E era por este e outros motivos que minha mãe pedia em suas preces:

Ave Maria, cheia de graças; dê-me mais uma vez a graça de viver. O Senhor que está convosco; peço, por favor, para olhar meu marido. Bem dito sois vós; agradeço por ter meu filho e seu Geraldo perto de mim. Bem dito é o fruto de vosso ventre; que Jesus esteja conosco. Amém. E eram com estas palavras que minha mãe terminava seu doloroso dia.

PARTE II - O RETORNO

Às vezes não consigo entender como certas lembranças são tão intrusas, entrando sorrateiras e despercebidas, almejando atingir a realidade do hoje. Uma vizinha nossa chamada Hanna, mística de carteirinha disse uma vez que as lembranças eram como peixes no oceano que nós pescamos predatoriamente para que nós nos alimentemos constantemente delas. Bom, se isso era verdade ou não, não me interessava tanto, o importante é que essas recordações fizeram me aproximar de minha casa, um quilômetro virou cem metros, e com isso já estava a duas quadras da chácara cujo nome era Florianópolis, mesmo nome de nossa cidade natal.

Floripa era uma cidade que na maior parte do ano tinha um sol inexpressivo e hoje não poderia ser diferente, pois neste dia nublado, o sol estava usando as nuvens como máscara e o vento frio como veste. Com o tal vento forte a me castigar, quase não podia abrir os olhos, lacrimejavam demais. Foi quando o vento parecia que não terminaria que, por intervenção da natureza, a ventania cessou e a calmaria me alcançou, o vento nos meus ouvidos já não uivava mais, e os meus olhos quando se abriram viram quem me amava, era Geraldo com seu sorriso genuíno, querendo abraçá-lo, se afastou, saiu pelo portão e nunca mais voltou. Tive a certeza quando entrei em casa, meu pai em prantos deu-me um abraço tardio e minha mãe, a velar o corpo, para mim sorriu, e disse:

--Filho, seu avô agora está cuidando das terras de Deus, construindo moradas e colhendo flores para, algum dia, receber os seus.

Milton Roza Junior
Enviado por Milton Roza Junior em 29/11/2005
Reeditado em 16/02/2011
Código do texto: T78259
Copyright © 2005. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.