M(*)

Sandro tinha 14 anos. Nunca foi um bom aluno. Tampouco era um bom atleta. Desta forma não conseguia boas notas. Nem em Educação Física.

Isso mudou quando o professor apresentou a turma um novo esporte: o dodgeball. Uma espécie de queimada, que, de acordo com seu professor, "tem a capacidade de mobilização do futebol, o delírio do basquete e a estratégia do xadrez" (um grande delírio, sejamos honestos), consistindo na formação de dois times que jogam com as mãos e tentam eliminar seus adversários a partir do arremesso de bolas. Sandro era o melhor jogador dessa "modalidade" na escola. Nem mesmo os alunos do "terceirão", mais preocupados com o que lhes reserva na vida adulta, como se só o fato de se formar do ensino médio habilitasse alguém para a vida adulta, conseguiam jogar como ele. Incólume de qualquer tentativa de queimada, sequer deixava qualquer bola cair no chão. Nas semanas em que o dodgeball foi ministrado para os alunos da Escola Estadual Deputado Silva, Sandro se sentia melhor. Não era apenas um aluno de ruim para medíocre, era uma pessoa de ruim para medíocre. Era tão inexpressivo, que costumava sonhar em terceira pessoa, introjetando de maneira tão violenta seu sentido de autodepreciação, que nem de maneira inconsciente se abstinha de pensar assim. Porém o esporte conseguia o aliviar um pouco disso: era como se no horário da aula de educação física ele pudesse sair desse ciclo de violência intromissivo. Sentia-se importante jogando o esporte, mesmo considerado como insólito por parte da crítica desportiva. Sentia-se querido pelos colegas, mesmo que fosse só naquele momento. Ele se sentia vivo. Foi um baque para ele quando seu professor anunciou:

- Alunos, não teremos mais as aulas de dodgeball. Conforme dirimido pela direção, adiantaremos o cronograma do ano e teremos futsal a partir de hoje.

Essas palavras esmoreceram Sandro, que ainda foi avisado individualmente pelo professor:

- Você está dispensado dessa aula, vá direto para sala da coordenação! Ordens expressas da diretoria.

Sandro não conseguia realizar o que poderia ter acontecido para ter sido chamado, raramente ia para direção. Desconfiava que a diretora, a coordenadora e a supervisora sequer sabiam quem ele era, afinal pessoas desprezíveis não costumam ser lembradas.

Na sala, estavam presentes a diretora, a coordenadora, a supervisora. Pensava que coisa boa não poderia ser. Afinal, ninguém é chamado pela direção para ser adulado. A conversa seria com a diretora principalmente.

- Sandro, por favor, sente-se. Precisamos ter uma conversa séria!

- Certo.

- Você tem noção por que chamamos você para esta conversa?

- Nem desconfio.

- Certo, é para falar do seu desempenho recente nas aulas de educação física.

- O que tem com isso?

- Você estava indo muito bem nas aulas que envolviam o esporte dodgeball, não é isso?

- Acho que sim. Eu nunca fui muito bem em nada, mas acho que é possível dizer isto.

- Eu não falei, Sr. Coordenadora, Sr. Supervisora. Ele não teve essa audácia.

- Como assim, o que foi audacioso da minha parte?

- Ir bem nas atividades de dodgeball.

- Como assim, eu deveria ir como exatamente?

- Mal, você deveria ir mal como você faz em tudo na sua vida! - disparou a supervisora, se enervando, sendo aparteada pela coordenadora.

A diretora voltou a tomar o controle da conversa com Sandro, levantando-se para se fazer melhor entendida.

- Sandro, você já parou para pensar como na sala de aula existe uma diversidade muito grande.

- Nunca parei para pensar.

- Certo, mas pense comigo pelo primeiro momento, sim. Pense nos seus colegas de classe.

- Tá!?

- A Mariah, por exemplo. Ela tem um desempenho notável na maioria das disciplinas certo?

- Acho que sim!?

- Já o Lucas também tem um desempenho muito bom, mas muitas vezes, por ser um moço namoradeiro, acaba por ser um pouco displicente nas aulas, sendo notável que ele tem uma grande memória.

- É, acho que sim também - Sandro estava mais intrigado como alguém podia usar a expressão "moço namoradeiro". Certamente alguém que usa essa expressão não deveria trabalhar com jovens, afinal, essa expressão é extremamente datada, revelando uma distância enorme para com a juventude.

- O Giovanni é muito bom em matérias exatas, o Wellington é muito alto e por conseguinte consegue ir bem nos esportes em que a altura é bem demandada, a Cláudia desenha muito bem, a Camila e o Vitor são extremamente queridos por todos, tendo uma vida afetiva bastante agitada, os Caios jogam muito bem futsal, a Juliana escreve muito bem e já consegue ganhar algum dinheiro com concursos literários juvenis.

- Certo, mas o que tudo isso tem a ver comigo?

- Eu estou tentando explicar, Sandro, que não existe só uma forma de ser feliz. As pessoas são inerentemente diferentes, aceitando suas formas de ser e sendo felizes consigo mesmas.

- Eu acho que não consegui entender...

- Ela está dizendo - interrompendo a coordenadora - que a maneira que você tem de ser feliz é sendo um bosta fracassado e deixando as outras pessoas serem melhores do que você.

- Ahn?

- Você nunca percebeu que você é o m(*) da turma? Você é o m(*) da turma. E mais. Você precisa ser o m(*) da turma. Não só da turma, mas desse colégio. Diria eu que até da cidade.

- Como assim?

- Essa diversidade toda que eu citei só tem sentido se alguém for o m(*). Aquele coitado que só dá errado. Aquela pessoa que insiste na vida, mas que a vida não insiste nela. Eu citei exemplificadamente a Mariah, o Lucas, o Giovanni, o Wellington, a Cláudia, a Camila, o Vitor, mas eu não entrei no mérito da vida deles, dei apenas características breves sobre eles. Provavelmente eles também devem ter seus problemas, seus fantasmas, seus anseios, suas angústias, seus sonhos e seus pesadelos. Mas, no fim, por pior que a vida seja, porque ela é ruim, eles vão se sentir menos desconfortáveis sabendo que elas não são um pedaço completo de m(*). Mas para isso alguém precisa ser m(*), e essa pessoa é você. É por isso que precisamos tirar o dodgeball do programa, você não pode ser bom em nada, você precisa ser frustrado, você não pode ter ou realizar sonhos, e coisas boas para você não são boas, são as coisas menos ruins que fazem com que você continue vivo, vivo para ser o m(*). Achamos que é melhor te avisar, para você não tentar ser bom em mais nada, mas ser m(*).

- Eu não sei se quero essa toda coisa de ser o m(*). É muito degradante. Essas pessoas têm o meu sofrimento para se sentirem melhor, mas eu tenho o quê?

- Em primeiro lugar, você vai levar uma suspensão por uso de palavra de baixo calão. Em segundo, f(*), você é m(*), você não precisa se sentir bem, você só precisa continuar sendo m(*). Entendeu, seu m(*).

Gabriel Figueiredo
Enviado por Gabriel Figueiredo em 29/06/2023
Reeditado em 19/01/2024
Código do texto: T7824929
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