A Casa dos Dilemas
1. O Céu da Casa
Alto, o céu da casa. As tábuas brancas do céu eram desencontradas e a tinta estava sempre descascando. Nos quartos do céu da casa, pendia um fio retorcido com poeira aderida e a lua de vidro com uma lâmpada dentro dela.
2. O Chão da Casa
Em algumas peças, o chão rangia. Em outras, o silêncio era convicto. No chão do escritório, a escrivaninha esperava o Correio do Povo aberto. No chão do chão, o mistério das letras que ainda não eram decifráveis às vezes ganhavam companhia do Miguel.
3. Os Pátios
Em um dos pátios, o céu era mais além, e os muros laterais tentavam limitar o espaço da infância. Os vidros teimavam em imantar a trajetória inevitável da bola de couro número quatro. Quase oficial. “Bola, nunca mais”, dizia a vó Jurema depois da vítrea catástrofe. No outro dia, o time estava pronto para o próximo embate. Por alguns anos, o time era um versus um. Alguns anos depois, o adversário (irmão Flávio) compareceu com seu chute verde, com sua trajetória elíptica e imponderável. “Bola, nunca mais”. As folhagens do pátio sofriam caladas. Terminada a partida, cada um dos times juntava folha for folha, pétala por pétala. “É adubo”, o pai teria dito. “Vocês vão terminar com minhas plantas”, diria a vó Jurema. "Esses guris", diria a mãe. Esse o pátio retangular. Mais comprido. Para os chutes com mais força. Mas havia o pátio quadrangular. Para os dribles, para a bola de meia e o gol apequenado. “Chega de grito”, teria dito a mãe. Mas, se disse, foi uma vez que outra. Incrível como uma simples bola de meia, se bem chutada, pode trincar uma vidraça. Pois conseguimos. Até hoje ali mora a tatuagem térrea da infância na Rua Salgado Filho: um ponto raiado em rachaduras no vidro da porta de ferro. Quando o tio Gerôncio vinha de São Sepé, depois do almoço jogávamos o campeonato mundial. Durava cinco minutos, mas jurávamos que aquele tempo era todo o tempo do planeta. A bola de meia era mais redonda, então. O pai, o tio, meu irmão Flávio, o Cinho, meu primo, e eu: a seleção brasileira. A Luzia nunca foi convocada para a seleção. Até hoje reclama ao bispo de São Sepé. (Mas São Sepé não tem bispo, diga-se de passagem).
4. O Quarto
A penteadeira com os pés retorcidos, a cama do vô Miguel e da vó Jurema. O espelho da penteadeira. A vó Jurema não fica muito ali. Passa a escova no cabelo sem muito cuidado. A vó Jurema não se enfeita. A minha cama ali, do lado. Disso não lembro. Não lembro da cama ao lado rangindo, nem de gemidos e de cobertas móveis. Não há relatos de montanhas sob a lã Uruguaya dos cobertores Luna. Faz frio em Bagé. Do quarto, não sei dizer mais nada.
5. O Hall
Um móvel antigo para colocar guarda-chuvas. Preto. Um espelho em losango, no móvel. Os homens ainda usavam galochas. No hall, várias vezes estavam dois sacos com bolachões enormes. Dentro de poucos dias, seriam levados à Estância e Cabanha da Bolsa, Sucessores do Senhor Eurico Piegas Dias, P.A.P. Muito depois, soube que a famigerada sigla significava Participação Agro-Pecuária. Quem participava? Além dos sucessores, é lógico, participava o meu avô Miguel, cuidando das burocracias, e eu. Meu setor era o das bolachas, que ficavam no hall, enquanto não eram enviadas com o restante dos suprimentos. Era sagrado: uma bolacha de cada saco, para roê-la com o prazer de tudo o que é secreto. Os sacos eram enormes e costurados na boca. O furto das bolachas era uma ciência a ser desenvolvida com apuro e habilidade manual. Vô Miguel assistia a grande trampa em cumplicidade e orientando as minhas mãos ainda inexperientes. Na hora h, às vezes o Miguel intercedia, arredando a teimosia da bolacha gigantesca na estreiteza da costura. Depois, eu ia comê-las. Escondido.
6. O Telhado
No pátio retangular, o telhado era escalável. Dali, meu irmão e eu inventamos três pára-quedas. Primeiro com o guarda-chuva do Miguel. Não funcionou, e os joelhos ganharam bênção de Mertiolate e assoprões da vó Jurema dizendo pronto pronto. Mas não desistimos. Alguns dias depois, descobrimos o guarda-sol. Ainda guardava um pouquinho de areia do último verão na praia. Novamente, em queda livre nos arremessamos. Desta vez, já sabíamos onde estava o Mertiolate. O pronto pronto ficou faltando. Por último, um lençol. Cordas de nylon. O mais corajoso de nós estava pronto para o salto derradeiro. O avião-telhado estava há dois mil pés quando avistamos os dois pés terráqueos da Jurema dizendo para o meu irmão: “Desce daí”. Encerramos assim nossa aventura aérea. Para sempre.
7. As Visitas do Tio Beto
De tempo em tempo, o tio Beto vinha visitar a mãe dele. No caso, a nossa vó Jurema. O tio Beto tinha estranhas ocupações. Violonista, boêmio, cantor e cervejeiro. Nunca foi reconhecido pela mídia da época. Nas horas vagas, tio Beto namorava Euclides, um ratão enorme que morava numa toca secreta, dentada ao rodapé da varanda. Algumas vezes meu irmão encontrou o tio Beto sentado na cadeirinha do Miguel, ao lado da toca do Euclides. Na porta da toca, um queijo seco. O corpo do tio Beto, inclinado em direção à toca, era a estátua do pensador. A mão esquerda segurava o cotovelo direito. Na mão direita, um martelo. Se ele acertou as contas com o Euclides, não ficamos sabendo nunca. Mas o chão da varanda tem cinco luas minguantes encravadas nele.
8. A Sala
Uma lareira. O Miguel numa cadeirinha sentado ali, perto dela, mexendo no fogo e acompanhando a dança rubra e os estalidos da madeira. De quando em quando, uma frase do quartel. Nós, deitados num pelego de ovelha. A Jurema trazia pipoca. Sempre era inverno em Bagé. Um lustre com quatro mil pingentes de cristal se pendurava no teto.
9. A Janela do Tio Cassiano
Televisão é coisa nova. Um dia visitamos o tio Cassiano, casado com uma irmã da vó. A Jurema avisou: “Se comportem. Eles têm um aparelho televisor.” Sem respirar, cheguei à casa do tio Cassiano. Cento e quarenta quilos imóveis, rosto distante e sem expressão. Sentado a um metro e meio do aparelho televisor. As mulheres da casa e eu, sentados mais atrás, girafando a cena com os pescoços inclinados. Inesquecível a cena. A máquina mostrava um circo. Trapézio. A morte nos ensaios pressentidos. Depois de cada número, tio Cassiano aplaudia. Por via das dúvidas, vó Jurema acompanhava-o nas palmas e me dizia: “Bate palma, meu filho, bate palma”.
10. Vô Miguel Compra a Sua Própria Janela
Ao lado da lareira, Miguel instala a nova janela. Mora ali um sujeito chamado Agildo Ribeiro. Ele tem um amigo italiano: um orelhudo chamado Topo Gigio. Domingo à noite eu me debruço naquela janelinha. Fico ali. O bicho conta umas coisas engraçadíssimas e mexe os orelhões redondos.
Mas domingo à noite o pai e a mãe vem me levar para a janta dominical. Um churrasco no “Ao Índio”. Quando eu abandonava o camundongo, lamentava-me a escolha equivocada. Quando abandonava os pais igualmente era trágico. Por isso, quando me perguntavam: “queres ir ou não” juro: minha garganta trancava. A Casa dos Dilemas se inaugurava de domingo em domingo. Contra o vento da dúvida, meu silêncio de pedra.