Elas.0 (monólogo)
"Ontem quis em meus braços
Impedido pela distância
Seu retrato saciou a saudade"
Incrível. Incrível como as coisas acontecem. Incrível como tudo a nossa volta, assim, num piscar de olhos, se transforma e o grande castelo da felicidade se desmorona. É...tipo conto de fadas, sabe. Tudo perfeito, lindo, mas não. Tudo num estalo de dedos, bummm! , desmorona. E a realidade. A triste realidade. O espelho na cara, sem disfarce, sem maquiagem. Sem dó, nem piedade, a realidade vem e, meu amor, não tem escapatória. Não tem saída de emergência, parede falsa, não, está na sua cara, sem meias desculpas, não há desculpas, somente a dura realidade. A realidade com toda verdade, sem rede protetora. Não. Não há negociação. É a pedra na vidraça. O estilhaço. Os cacos no chão.
Outro dia, um dia desses, um comum dia de quinta feira, gente na rua, buzinas tocando, a faxineira no seu ofício (mal pago, claro), enfim, um dia comum e toda lógica de uma vida que luta pra sobreviver. Eu, sim, euzinha aqui, essa que vos fala, euzinha, acordei disposta a ser feliz. Éeee, acho que a felicidade é uma questão de disposição. enfim, euzinha, acordei disposta a ser feliz. Levantei. Tomei meu café. Demorei tanto no banho que sai já quase na hora de estar no trabalho, ou seja, atrasada. Mas não liguei. Estava disposta a ser feliz e quem acorda assim não vai se preocupar com horário, não é?
Saí. Saí atrasada, feliz. Ônibus lotado, decidi que nem o ônibus lotado iria estragar meu dia. Nada. Nada ia alterar meu humor e fazer eu desistir do que decidi naquele dia, ser feliz.
Chego no trabalho. Já na portaria do prédio, dou de cara com seu ... melhor não falar o nome, enfim o sujeito sem nome, era daquelas pessoas que parece que nasceu pelo *cu* . Sempre de cara amarrada, grosso, quer dizer, só com o pessoal de baixo, para os de cima, ah! , para os de cima, baixa as cuecas e faz boquete, duvido que não. Gente assim não tem amor próprio, gente assim, do tipo do sujeito sem nome, gente que nem ele, lambe o chão pro diretor passar. São pessoas que Étienne de La Boétie, chama de serviçais voluntários. São pessoas que se pré dispõem a servir sem serem obrigadas, entende *?* O sujeito era dessas pessoas, um babaca baba ovo de chefe. Enfim, já na portaria, o tal sujeito sem nome, marrento, me olhou de cima a baixo (odeio quando me olham assim) como se eu fosse o ET do filme. Eu, heim! Então, o sujeito me olhou como se ele, na sua posição de serviçal do explorador, fosse diferente de mim. Na hora, tive raiva, deu vontade de gritar, mas não. Fiquei calada. Não ia permitir que um sujeitinho metido a superior, só porque abre a porta pro diretor, estragasse meu dia. É, meu amor, decidir pela felicidade é algo revolucionário quando o que se tem é só boletos e relatórios. Decidir ser feliz tem o efeito de uma explosão, não ia permitir que estragassem meu dia. Não, não ia aceitar, contra minha decisão, que naquele dia, o dia *em* que decidi ser feliz, que um alguém, qualquer alguém, principalmente gente da laia do sujeito sem nome, jogasse fubá na minha receita. É impressionante ver que há muitas pedras no caminho. Eu, hein, cruz credo. Horrível saber que tem muita gente ser essa pedra. Mas não. Não naquele dia.
"Vontade de conhecer quando vou relendo" . Gosto dessa frase. Essa frase recolhi de um livro, um livro *que* chegou às minhas mãos de um jeito meio mirabolante, anedótico. Foi assim: eu estava numa padaria, sozinha. Estava viajando, completamente alheia, distante, na lua, enfim, no meu casulo. Lembro que estava com um livro, um outro, nem lembro o título. Do meu lado, chega um rapaz, um moço com cara... tipo "oi, você por aqui?". Meu deus, por que fui falar isso? ah , já foi, falei. Bom, continuando. O moço se vira e começa a puxar papo, normal, mas percebi que havia algo ainda não revelado, suspeito, mas não um suspeito de causar medo, não, era uma suspeição, assim, sem grandes consequências, enfim... mas o fato é que o moço começou a falar de um escritor, um escritor que ele dizia gostar muito. Um escritor de contos, de contos fantásticos ou realismo mágico (confesso que até hoje, não entendo o que é Conto Fantástico ou realismo mágico). Mas, enfim, conversa vai, conversa vem, em determinado momento, o rapaz, o moço, diz que tem que ir embora e não poderia ir sem antes me deixar um presente, esse aqui, esse livro. É nele que está essa frase que tanto gosto, vou ler ela toda, " mas era pior, uma vontade de conhecer quando vou relendo, de encontrar códigos em cada palavra jogada no papel depois de tantas noites ". Não é bonito? Consegue ver quanta beleza, quanto significado, quantas possibilidades, tem nessa frase? É bonito. É bonito perceber a cadência, a harmonia, como cada palavra ao se juntar à outra seguinte, como uma valsa, vai construindo uma imagem. Uma imagem tão bonita, tão... doce, que (vou chorar, não posso chorar) desde aquele dia adotei essa frase. O moço nunca mais vi. Deve ser um presente da vida. Dessas coisas que a vida manda, deixa e vai embora, mas que muda muito a gente, muda nossa mais singela percepção das coisas, das ocorrências interpostas pela vida. Penso que foi isso, um presente, um presente que guardo com muito carinho, com uma saudade, uma saudade não sofrida, mas aconchegante, sabe, uma saudade que me faz pegar esse livro e *trazê-lo* junto ao coração, como se trouxesse também o moço.
Você acredita no amor? Acredita mesmo ou...acredito, assim, por habito em responder sem pensar na pergunta. A gente tem o hábito de responder sem pensar. Assim, tipo, no automático, sabe. Tipo atendente de telemarketing. Já notaram, atendente de telemarketing responde sempre no mesmo tom, voz metálica, mesma irritante frequência, resposta protocolar. E, quase sempre, não resolve nada. Você quase explodindo de raiva e a figura "posso ajudar *em* outra coisa?" Quando me perguntam isso, respondo, sim, em começar resolver o que não resolveu. Então, de novo, acredita no amor?
Às vezes, penso no moço com saudade. É possível sentir saudade de alguém que só viu uma única vez? Faço essa pergunta. Às vezes, normalmente quando estou com Cortázar, Pessoa, penso como teria sido certos encontros, certos romances. Como teria sido se determinada palavra não tivesse sido dita. Como seria um olhar mais cuidadoso, mais... cúmplice, sabe, entende o que quero dizer, não? Enfim, às vezes, sinto saudade do moço. Sinto que a vida me deu um presente mas não quis que eu vivesse a alegria de tê-lo, não sei, mas penso nisso... às vezes.
Morangos mofados. Outro dia, um mês, talvez hum ano, não lembro direito, num café com Soraya, uma amiga, foi assim, do nada, parecia que a boca, por um instante, como um impulso, parecia que a boca da minha amiga, quisesse mostrar que tinha vontade própria. Então, do nada "morangos mofados". Hein, o que disse? Morangos mofados, minha amiga repetiu. Sim, entendi, mas...o que isso quer dizer, por que disse isso, assim, do nada?
Morangos mofados é a obra de um escritor brasileiro, conhece? Não, não conheço, respondi. Pois devia, disse minha amiga. Depois, levantou-se e saiu.
O táxi chegou. Estava chovendo. Nas ruas, muita gente apressada. Boa parte delas sem guarda chuvas. A chuva chegou sem dar sinal. O homem do tempo ( na verdade uma mulher), temos a mania de achar que tudo é o Homem, coisa mais horrível! Parece que não existe mulher! Enfim, a chuva chegou e pegou todos de surpresa, até o rapaz que costuma vender capa de chuva, até ele, foi pego de surpresa; não tinha uma capa, nas mãos chapéus Panamá e bonés; coitado, não vendeu nada.
O táxi chegou. Do outro lado da via, sem qualquer possibilidade de retomada, sem, ao menos, mesmo que por ato involuntário, próximo ao acostamento da via, jogado sem cuidado, um bouquet de flores, como se destinado a alguém que recusou. Flores vermelhas e amarelas dormiam solitárias no acostamento da via. Olhar aquelas flores jogadas, jogadas com alguma mágoa, não sei explicar, mas parecia que foram jogadas por alguém com muita mágoa, com muita dor. Talvez por algum sentimento muito profundo, me pareceu que aquelas flores, jogadas, parecia que nelas estava a dor da pessoa que as jogou. Estranho, eu sei, mas pensei nisso, pensei, também com certa dor, ao imaginar quem jogou, por que jogou; enfim...
O táxi chegou. A bela moça de sapatos vermelhos, entrou. O velho espanhol da bomboniere, da bomboniere onde compro chocolates pra Vilma, passa apressado; a chuva aumentou. Pessoas correm. No chão, as flores, vermelhas e amarelas, jogadas, solitárias, dormem.
Ouve? Consegue ouvir? Cantos de sábias. Gosto do canto do sabiá. Gosto de outros também, mas o do sabiá, não sei, me *traz* algo de melancólico, algo parecido com um chamado, um chamado nunca respondido, sabe? A rua onde moro é tipo uma alameda. No meio um traço bem simpático, um trajeto estreito, uns 5 metros ( só passa um carro), e nas laterais árvores esparsas. Entre uma e outra árvore, finos raios de Sol atravessam as folhas. Se olhar com distância, parece um corredor transpassado por sutis raios de luz; é bonito, parece aquelas manhãs de outono, sabe. Imagine tudo isso com o canto do sabiá, consegue, consegue imaginar? É bonito ... é bonito. Nessas horas penso. Penso na vida, no quanto somos frágeis, no quanto, assim, num estalar de dedos tudo pode acontecer e mudar nossas vidas, nossos sonhos.
Penso no filme que marcou, numa cena específica, sabe, tipo aquela do Cinema Paradiso, do... como é mesmo o nome do diretor...Giusseppe Tornatore. Então, esse filme é cheio de cenas lindas. Tem a do Toto, já bem adulto vendo cenas de beijo que Alfredo guardou pra ele. Tem um bem engraçada. Totó, criança, num acesso de raiva, manda Alfredo tomar no cu !" Alfredo, vai a farti fottere!" Mas a minha cena, a que me faz chorar, a cena que eu levaria pra toda vida, é quando Alfredo vira o projetor para a praça. É o cinema virado para o povo, na Àgora, e passa um filme de Buster Keaton, um gênio da comédia muda , pouco lembrado. Então, eu penso. Penso no poema por ler, no amor por viver. Penso. Penso como se parar de pensar tudo também para. Não parar de pensar. Parar de pensar é a mesma coisa que tirar o oxigênio. É... você até pode achar um exagero, mas é a sensação que tenho. Não posso parar de pensar. Nessas horas um torpedo parece que atravessa minha espinha, sabe, penso em coisas que já aconteceram, coisas de criança, de adolescente. Olha que engraçado. Outro dia me peguei pensando em Flávia. Uma paixão infantil, da época do segundo ano primário. Flávia foi minha primeira paixão. Eu tinha, sei lá, uns 9, 10 anos, Flávia, uns 9 , não sei direito, mas foi isso. Primeira paixão, Flávia. Fiquei pensando, como deve estar Flávia, será que está viva, casou, teve filhos *?* , enfim, essas coisas que a gente se vê pensando. Às vezes, penso que a vida traz essas lembranças, como o mar, sabe, que devolve o que não quer guardar. As coisas *que* o mar leva pro fundo, para não serem vistas, lembradas, resgatadas, ficam lá, é como nosso inconsciente, sabe, fica lá, na memória, em caixas bem trancadas. Às vezes, umas resolvem abrir, sabe, tipo, quando alguém perde a chave e a pessoa que acha consegue abrir a porta, sabe. Tipo segredo, sei lá, acho que é um pouco isso.
Ontem minha vizinha resolveu que não ia mais querer seus passarinhos na gaiola. Resolveu abrir todas as gaiolas. Resolveu que ia dar, para cada passarinho, que ela cuidou com tanta devoção e carinho, que ia dar para cada um a liberdade. Curioso que, cada passarinho ou *passarinha* tinha um nome, nome de gente. A Rebeca, uma calopsita, era a exagerada, segundo minha vizinha. Jacinto, um canário belga, tinha um canto suave, chegou na vida dela num momento de despedida. Foi quando, Arnaldo, o pintacilgo, resolveu fugir com Dorotheia, a canarinha da terra. Minha vizinha, toda vez que lembrava dessa história, ficava triste, triste pelo que ela chamava de desconsideração. Mas foi assim, ontem, minha vizinha resolveu abrir as gaiolas e soltar todos os passarinhos. Ela ficou mais leve, ficou mais leve em abrir as gaiolas. Mais... sei lá, livre para ver outros pássaros.
Já sentiu dor alheia? Isso, assim mesmo, já sentiu dor alheia? Consegue entender isso? Sentir dor alheia, como será, como deve ser? Tantas perguntas, tantas indagações quando o que se ensina, o que se tornou a nova pedagogia, quer dizer, um novo, e triste, modo de ser aceito. Essa triste e nova pedagogia, do individualista, do hedonismo, me faz pensar, com tristeza, que sentir dor alheia é coisa de gente sem ter o que fazer. Você acha isso? Não. Não acho. Sinto dor alheia de tanta gente: das crianças abandonadas e esquecidas nos institutos públicos, dos velhos nos asilos. Sinto as dores de Gisbertas, Emilys, Fabianas. Sinto a dor de Milenas, Stephanies, dores dessas mulheres, mulheres trans, mulheres odiadas, mulheres assassinadas, mulheres invisibilizadas. Tanto quanto, todos aqueles corpos não inseridos no padrão consignado como normal. Corpos contrários, e por isso, perseguidos, a uma normatividade herdeira de um pensamento escravocrata e patriarcal. Todos e todas "desviantes", serão perseguidos e perseguidas em nome de uma lógica que não aceita o que expõe e contraria a norma. São seres descartáveis, seres sem direito. Entende, entende a dor alheia? Entende a dor desses corpos, corpos assujeitados, corpos-alvos, corpos sentenciados num processo social que condena pela exclusão de direitos e cordialmente descartáveis. Corpos descartáveis. Dor alheia, não consigo não sentir.
Tanta gente, tanta gente passa pela nossa vida. Cada um que passa deixa um pedacinho. A gente é, sei lá, eu acho, que a gente é *feito* um pouco com esses pedacinhos. Mas é estranho, é estranho que ao longo da vida, como um trem, as pessoas vão chegando, entram no trem e, conforme o trem avança, vai enchendo , depois vai ficando vazio, as pessoas vão descendo, e o trem ficando cada vez mais vazio. *Estranho* isso, não?
Sonhei com Valeria, Cida, Jorge, Mauro, Adriana, Rosana, Joana, Morgana, Pedro, Roberto, Sônia, Flávia, Sônia ... amigos e amores. Todos guardados e cuidados. Ah, como não ser feliz! Como não ser Fe Liz! Eu que tanto amei, eu que tanto sofri. Escrevi cartas e cartas. Tantas cartas de amor que eu, euzinha, essa mesma, sou a encarnação do que é ser ridícula. Pessoa que disse "cartas de amor são ridículas" , soy yo, prazer.
O vendedor de frutas não foi hoje. Muitos anos lá, nunca deixou de ir, mas hoje não foi. Muita gente, cliente e amigos, estranharam a ausência tão cotidiana, tão urbana. Ele já era parte da paisagem, sabe. Imagine alguém pintar um quadro daquela esquina, daquela localização e não colocar o vendedor de frutas; consegue conceber? Claro que não! Impossível um quadro daquela esquina sem o vendedor de frutas, é o mesmo que falar de *Van Gogh* e não mencionar Noite Estrelada. O vendedor de frutas não foi hoje. Aquela esquina ficou tão vazia, tão cinza, tão sem vida. A esquina sem o vendedor de frutas é apenas uma esquina, só, só uma esquina como tantas outras.
Vazio. Vazio foi um espetáculo que tocou fundo. Meio apocalíptico. Um acrobata em cena, palco escuro. Ao fundo, uma tela que projeta imagens como se quisesse significar algo como o Big Bang, a origem de tudo, sabe. Tudo costurado por uma música conduzida ao vivo, pela narradora. O texto é belíssimo. É arrebatador, de tirar o fôlego. Penso com frequência nesse Vazio. Será esse vazio nossa sentença, nossa máxima sentença, sem direito a recurso, ou, sei lá, apenas a constatação de que vivemos num perpétuo vazio. "O tempo escorrega em fendas" Qual é a sentença, o veredito, dessa frase. Está nela um outro Vazio? Um vazio de tempo de vivência, de convivência e que, na ponta contrária, escapando por fendas, *escapamo-nos* também, como se a vida se tornasse líquida, a exemplo, das relações? Não sei. Vazio, o espetáculo, belo e apocalíptico, mexeu comigo. Sinto que de algum modo, Vazio, pôs em perspectiva, para que eu olhasse, cuidadosamente, outras possibilidades, não sei, mas foi assim que senti.
Hoje resolvi ser feliz. Resolvi que não ia permitir que ninguém roubasse, isso mesmo, roubasse minha decisão de ser feliz. Decidi seguir em frente, seguir com minhas dores, meus amigos e meus amores. Resolvi sair e viver. Resolvi revolucionar, romper com tudo que possa me prender. Resolvi que nem o sujeito, o sujeito sem nome, o cara de cu, o com cara de superior, o que abre a porta, ele mesmo, sabe, ele, hoje, hoje não, ia estragar minha decisão, minha *DIS PO SI ÇÃO* de ser feliz.