Gato e sapato
Era amor de carnaval. Coberto de cor, fragrância e algum despudor. Era o frio na pele aquecida, afogueada. E cada pedra das ruas lotadas sabia de nós. Era o beijo na boca sob o som altíssimo e as bênçãos sabe-se lá de quem. Nós dois em rodopio, deslizando da Central a Nilópolis, levando nas mãos os confetes e as confidências sussurradas, regadas a vinho barato. Baco que me perdoe!
Eu nunca irei esquecer! Com esforço, ainda posso ouvir sua voz firme e afinada. Sua risada serena. Posso sentir seus dedos entrelaçados aos meus e meus cabelos passeando folgados e soberbos em sua barba imponente.
Acredito que ninguém mais se lembre. Eu não queria ir embora. O trem estava lotado e chovia fino e ainda havia vinho no copo descartável e as pessoas não paravam de passar entre as horas corridas. Somente meu gato esperando em casa para receber água, comida e alguma atenção enquanto eu vagava com você pela primeira vez e pelas ruas sem nome. A que horas sai o próximo trem? Já amanheceu? Quando a gente volta?
Mas foi sozinha que eu voltei. Sem o aroma do vinho e da sua pouca roupa. Sem seus dedos entre os meus e sem suas piadas fora de hora. Contando ninguém acredita. Minha cabeça doía tanto e meus movimentos eram lentos como as canções que eu há muito não ouvia. Um gato desconhecido lambia meu rosto. Um pingo de chuva molhou os meus cílios coloridos.
Calma, Baco! Ainda sentia o frio na pele. Onde estou? O perfume já havia se esvaído. Foi substituído pelo cheiro de cigarro duvidoso e do lixo deixado nos degraus das escadas da estação de Nilópolis. E “o teu amor que tem cheiro de coisa maluca”? Levantei-me para saber se ele seguiu com o trem ou se canção me enganou. Nunca mais viu, Rita Lee?