O museu da cachaça
Era um apreciador de cachaça. Não bebia, sorvia cada gota do líquido como se fosse um sommelier. Conhecia marcas e fábricas ou alambiques pelo paladar. Gostava de seguir o ritual de degustação. Fechar os olhos, levar o copo ao nariz, dar uma aspirada no cheiro que evapora da cachaça, revirar o copo de shot na boca de uma só vez, bochechar para levar o líquido a todas as papilas gustativas, retornar o líquido para o copinho e dizer orgulhoso o nome e a fábrica. Às vezes arriscava até o ano de fabricação. Neste item não era muito certeiro, errava a maioria.
— Só falta vocês me perguntarem o nome de quem estava moendo a cana no dia que a cachaça foi feita.
Ria e sorvia o líquido que foi cuspido há instantes no copinho.
Todos sabiam do seu amor pela branquinha e sempre que encontravam alguma marca diferente ou rara, compravam para presenteá-lo. Guardava todas no quartinho que tinha nos fundos da sua casa que ele chamava de “Museu da Cachaça Brasileira”. No cômodo todas as paredes eram cobertas de prateleiras. As garrafas eram catalogadas com uma etiqueta em que escrevia a origem e ano de fabricação e o nome de quem comprou ou presenteou com a data em que ela foi incorporada ao museu.
—Todas as garrafas daqui são para o consumo, não têm nada ruim ou de qualidade duvidosa, são todas peças da melhor qualidade. Aquela prateleira lá de cima, apontava, guarda garrafas que são joias de colecionador. Valem muito dinheiro e são raras. Ali tem garrafa guardada que só existe ela. É única no mundo! Nem o fabricante tem! Nesta prateleira ninguém mexe. Vão ficar para o futuro. Pessoas virão aqui só para conhecê-las. Vou fazer história. Este museu ainda vai ser famoso no mundo e será atração turística na nossa cidade.
Só ele limpava as garrafas e as colocava de volta no seu lugar. Cada uma tinha o seu lugar na prateleira e ele sabia o lugar de todas. Se uma faltasse ou estivesse fora do seu nicho, percebia assim que entrava no museu. Era generoso com as consumíveis como as nomeava e sempre tinha um copinho de shot para degustar com amigos e convidados.
O museu cresceu e ganhou prestígio. Um primo foi eleito prefeito e declarou o Museu patrimônio Municipal. Teve cerimônia na Prefeitura com degustação de cachaça. Com esta fama extra, as visitas eram constantes e ele resolveu separar as cachaças raras em outro lugar. Fez um armário grande no seu quarto e as trancava lá. Ninguém abria aquele armário, mantinha a chave sempre no bolso. Sofreu quando precisou contratar um pintor para selar as paredes do seu precioso armário. A infiltração poderia prejudicar o seu tesouro. Não saiu do quarto enquanto o pintor estava por ali fazendo o serviço.
Com o tempo, o Museu deixou de ser um quarto no fundo do quintal e ganhou uma casa inteira na praça da prefeitura. As garrafas continuavam a chegar e encontravam um lugarzinho no Museu novo. O espaço era maior e em vez de separar as garrafas por prateleiras, ele agora as separava por cômodo. Tinha o cômodo das fabricadas no norte de Minas, das envelhecidas em toneis de madeira, das enriquecidas com raízes do cerrado brasileiro, das tipo exportação. Só as raras continuavam trancadas no armário do seu quarto.
Aposentou-se e dedicava o seu tempo ao Museu que se tornou famoso. Era curador voluntário e sempre acrescentava no seu acervo. O contrato de Patrimônio Municipal previa que ele poderia retirar o exemplar que quisesse e quando quisesse para consumo, desde que mantivesse a quantidade de garrafas. Consumia, repunha, cuidava e adorava estar sempre presente nas visitas guiadas para ouvir os elogios.
Fez um testamento doando as suas garrafas raras ao Museu da Cachaça Brasileiro. Essas só poderiam ser consumidas se quem as consumisse encontrasse outra exatamente igual, ano, fábrica, nome, rótulo para reposição. Na prática significava que elas nunca seriam abertas. Algumas eram exemplares únicos e se alguém achasse uma garrafa exatamente igual para que iria abrir a do Museu?
Faleceu enquanto dormia aos noventa e três anos. Motivo de comemoração, uma pessoa que vive uma vida boa e longa não merece um brinde? Os filhos resolveram que aquela era uma boa ocasião para abrir uma ou duas garrafas raras e brindar a vida do falecido. Um deles sabia onde o pai escondia a preciosa chave. Com muita tristeza, curiosidade e vontade abriram o famoso armário. Retiraram duas garrafas, levaram para o velório. Coube ao filho mais velho fazer o brinde.
— Ao pai. Homem bom, justo, amoroso. Dedicou sua vida à família e à cachaça. Nada mais adequado brindar sua vida e despedir dele com uma dose.
Solenemente abriram a primeira garrafa para fazer o shot. Este primeiro brinde era só para parentes e amigos mais chegados. Ao colocar o líquido precioso no primeiro copo, todos olharam uns para os outros espantados. Não era pinga, era água! Deixaram os copos na mesa e foram correndo, sem dizer uma palavra, até o armário. Cada um pegou uma garrafa. Abriam e cheiravam. Todas eram água. Filhos, primos, tios e esposa olhavam um para ao outro até que o irmão caçula deu uma risada bem alta e ainda rindo disse:
— Ou o pai foi um grande safado mentiroso ou alguém nestes anos todos bebeu suas cachaças raras e substituiu por água. Ainda bem que ele morreu sem saber. Nós também nunca saberemos ...
Márcia Cris Almeida
23/06/2023