Vaidade

Está sujo, sujo. De novo embaçado! Limpei-o com tanto esmero, quase tão bem quanto a mim, e de novo está sujo. É isso. Passa o tempo e vêm as manchas. Se o tempo parasse, seria sempre o mesmo do momento de quando dele eu trato. Ah, e se o tempo parasse enquanto estou aqui na sua frente, ele sempre ostentaria essa perfeição. No entanto, se por um segundo saio da sua frente, ele me deixa escapar e volta ao seu todo oco, pois o tempo escorre, é isso, sempre isso. Não só para ele, espelho estúpido que nem o percebe, mas também para mim; e mais para mim, que sou carne...e para quê estas roupas, se sou mais belo que elas? Se sou mais belo sem elas? Minha pele já me veste tão bem sem adornos e sem acréscimos que algo além de mim me encobriria, e eu seria menos belo. Sim, sem adornos é a perfeição; sem nuvens mais brilha o sol. E um sol solitário, sem um outro para o ofuscar...tentar ofuscar. Isto sou eu. Assim sou mais meu, e mais aos outros resplandeço. Para tempo, para!...Mas até as pinturas desbotam, os retratos perdem a cor, as flores perdem o viço, e eu...eu me perco, perco o ápice que agora sou. Sim, minha maior beleza está neste momento. De frente, de lado, de costas... Mas, espera, fecha-te, janela, à Luz artificial me contemplo melhor...Ahh, sim, que maravilha! Para tempo! Quero ser estátua de carne, sem vincos, sem nódoas. Para tempo, que isto é o Belo! O meu auge é o meu cume! Até aqui cheguei...não descerei. Sou isto, quero ficar isto...Cremes, plásticas, cirurgias...tudo costuras; remendos. Meu corpo cru, Eu, que agora contemplo, é isto que sou, isto que quero permanecer; Isto! Todo ápice é um fim. Não, não, não, sem descida, sem queda! A perfeição é um final. Daqui não desço...Ahhh, que abraço bom o do próprio corpo; de si. Ama-te a ti mesmo e não sê tua ruina! Para quê continuar? Chegar aos trinta, as quarenta, aos cinquenta...chegar àquele casal de velhos aqui do lado, com caras amassadas, surradas pelo relógio, sulcadas pelos ponteiros inquietos...não, não, para tempo! Ou eu me paro aqui. Os rostos daqueles velhos grotescos, seus corpos se derretendo, colunas trincadas, mordiscadas, juntas enferrujadas...o que eles são? São aquilo mesmo, estão podres! São a própria ruína; a casa mora-se. E eles, carcaças, morrem-se. Já eu, sou belo e...FORTE!

POU!

Trinca-te espelho! Eu não chegarei a tanto! A disformidade que agora refletes jamais será vista deste lado. Quebraste-te, nunca serás mais do que isto, e eu... nunca mais que agora.

Uma, duas, três, quatro pílulas...quanto mais, mais rápido, quanto mais, melhor. Menos foge o meu ser, menos foge o que sou e serei para sempre, agora...

Glute

Vou-me assim. Vou. Vou. Vou... ao chão.

Vou babar e espernear. Vou desligar, arrefecer, endurecer, inchar, estourar, feder... apodrecer! E aqueles velhinhos me acharão aqui, pelo meu cheiro nauseabundo. Não terei olhos a isto, mas eles sim. A polícia chegará, a perícia, será fácil a conclusão, virá o veredito “Fez-se só matéria”. Ora, “Fez-se”?...não entendem nada... Somos!

Aqueles velhos me olharão e sentirão pena...pena! Ahhhh raiva deles. Raiva já deles. Eles, mais feios do que eu mesmo depois do primeiro dia; mais velhos do que eu ainda depois do segundo; tão cadavéricos quanto eu depois do terceiro; mais tenros e aprazíveis depois do quarto; mais vivos do que eu depois do quinto; muito mais belos depois do sexto, do sétimo, do oitavo...Não, não, não! Vou Jogar-me ao mar amarrado a uma pedra. Vou enterrar-me vivo. Nunca me acharão. Nunca! Não terão pena de mim. Não me olharão de cima. Não me verão hórrido. Não me terão asco...e logo eles. Não! Mas...Ai..Ai... Não!... Não... Ai... Não!... Nãaaaao!...

David Ariru
Enviado por David Ariru em 22/06/2023
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