Viver é uma dádiva

A quem possa interessar

Viver é uma dádiva por mais complicado e difícil que seja. A vida deve ser festejada com reverência. Então que seja saboreada como um bom vinho, de gole em gole, sem pressa, pausadamente. Saboreando-a devagarinho, podemos degustá-la sem nos embriagarmos.

Mesmo com todos os momentos amargos eu amo viver. Mesmo sem viver todas as aventuras que a imaginação e o desejo nos impõem eu tenho sede de viver e agradeço pela graça de acordar a cada manhã. Quando se gosta da vida, gosta-se dela como ela é. O passado que sobreviveu em nossa memória, um dia já foi o presente e o futuro será o passado.

A minha existência é marcada por demasiada carência desde a infância. Sofri ausência de muitas coisas, mas isso não foi motivo para eu me desencantar, muito pelo contrário, todas as dificuldades me serviram de combustível para seguir em frente em busca daquilo que me faltava.

Perdi o meu avô materno quanto eu tinha pouco mais de quatro anos de idade e não tenho muitas lembranças dele, exceto de ele me contar histórias para eu dormir todas as noites e que em uma dessas ocasiões ele morreu enquanto eu o aperreava pelas histórias que eu não me cansava de ouvir e ele tinha que as repetir muitas e muitas vezes. Ele era o pai que até aquela idade eu conhecia. Depois de um tempo que meu avô morreu – não sei quanto tempo foi, mas creio que foram uns dois anos –, o meu pai apareceu e eu fui apresentada a ele. A situação era tão estranha, pois eu não o conhecia, não sabia nada dele. Então não me acostumei de chamá-lo de pai e o chamava pelo seu apelido, Chico.

Meu pai era motorista de caminhão e vivia viajando, passava muito tempo fora, o que não contribuía para nos aproximarmos, para criar uma intimidade de pai e filha. Eu o via sempre como um estranho, o que de fato ele era, apesar de ser meu pai. Não tenho recordações de ele brincar comigo ou me levar para passear. Mas tenho flashes de uma cena onde eu chorava para ele me levar ao circo, mas ele não queria me levar porque estaria com alguma mulher. Fiquei chorando nos braços da minha mãe.

[...]

Mamãe se virava com um banco de cereais e rapadura que ela vendia na feira nos dias de sábado – e eu era a sua ajudante – e também trabalhava na roça, mas nós passamos muito aperto. Porém as coisas passaram a melhorar um pouco quando ela foi convidada pelo dono do hospital para trabalhar. Então mamãe foi fazer o curso de auxiliar de enfermagem na capital e quando voltou começou a trabalhar no hospital e deixou de vender na feira, ou seja, deixou de ser feirante.

Eu sofri durante muitas noites de seus plantões porque sentia a falta dela e demorou um longo tempo para me acostumar, mas ao mesmo tempo sentia muito orgulho por ela ser “enfermeira” e “parteira” e as pessoas elogiarem o seu trabalho.

Desde que ela passou a trabalhar como enfermeira as coisas começaram a melhorar em casa, pois ela ganhava muitos presentes das mulheres que ela fazia os partos e dos pacientes que ela atendia com muito carinho. Ganhava de tudo, desde galinha, produtos da roça, perfumes, enfim o que eles tinham e desejavam partilhar para agradar.

[...]

Com exceção da escola e da igreja eu só ia à feira com a minha mãe ou a minha tia, não fazia parte da sociedade, portanto não recebia convites para festas. Mas era muito bom acordar a cada manhã e fazer as mesmas coisas que fazia todos os dias. Isso não me entediava. Nunca senti tédio por não viajar, nem frequentar as festas que muitas meninas da minha idade já frequentavam.

Aos catorze anos eu ainda me divertia brincando com bonecas, fazendo bonecas de sabugo de milho, brincando de roda, de amarelinha, de peteca, armando circo com os lençóis de mamãe. Eu curtia fazer as roupas dos espetáculos de papel crepom e areia brilhante, colares de milho. Criatividade era o que não me faltava. E mesmo indo para a escola, fazendo as atividades escolares, estudando e ajudando nas tarefas domésticas e ajudando com minhas irmãs e meu irmão havia tempo suficiente para tudo.

Que vida boa! Faltava-nos um pai, mas tinha três mães que se dedicavam totalmente a nós – eu e meus irmãos –, eu tinha certeza de que era muito amada.

Entretanto, a pergunta feita no início dessa história ainda permanece quem sou eu? Talvez eu seja contentamento de quem me ama, ou tristeza de quem me detesta e inquietação de quem me cobiça ou me inveja. Posso ser muitas possibilidades. Depende de quem quer saber.

Umbelina Marçal Gadelha

Do meu livro de memórias

Umbelarte
Enviado por Umbelarte em 21/06/2023
Código do texto: T7819395
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