BREVE RELATO SOBRE MEU PATRÃO ASSASSINO
Memorandos, cartas, contas… Ah..! Telefonemas, marcação de consultas, reuniões… almoços com esposa… Jantares com amantes… Tudo está aqui COMIGO, organizado por mim, neste meu arquivo… Pastas e subpastas, arquivos dentro de arquivos dentro de arquivos dentro de outros arquivos… arquivos, arquivos… Informações que deixam sua vida em minhas mãos – é o que parece (mas não é). Não é assim tão simples… A lealdade ultrapassou todos os limites, quando ele matou aquela mulher… Ela sempre ia lá, e era apenas uma das tantas “outras”. Sempre de preto como se tivesse de luto, se sentava em minha frente, no banco da recepção, eu fingia que ela era qualquer cliente, como fazia com todas, “A Sra. tem hora marcada, Dona D.?”, “OLÁ Sra. D. Que bom te ver de novo! Como vão os meninos?”. E ela sempre inquieta, envergonhada… Culpada, talvez. “Estão ótimos, obrigada.”, com um sorriso bem difícil de dar… Às vezes eu ficava pensando que perguntar sobre as crianças só fazia ela se lembrar ainda mais do “pecado” que estava prestes a cometer (sim, havia algo em mim que gostava de puni-la por isso). Meu patrão surgia poucos minutos depois. Já sem paletó, banhado num perfume barato, fazendo um sinal tolo com o queixo, que dizia algo como: “Entre agora mesmo, rapidinho, ligeirinho, VAMOS!”. E as moças entravam apressadas, como formiguinhas. Algumas bem descabreadas, outras em passos curtos, outras; provocantes, destemidas, sensuais. Mas, apenas ELA – aquela mulher de preto – esboçava um certo… PESAR, profundo diante daquilo… E naquela fatídica noite, escutei eles dois gritando lá dentro. E ela dizia que não era “vagabunda qualquer” ou coisa do tipo, coisas assim… às vezes elas diziam essas coisas… Parecia difícil falar enquanto suas calcinhas estavam no chão de um consultório médico… Mas, elas conseguiam. Ela chorava aos gritos e parecia tentar se vestir rapidamente, dizendo que não voltaria nunca mais, que estava desonrando a imagem de seu – falecido, talvez… – marido. A diferença é que não me recordo de meu patrão sendo, de fato, encerrado. E rejeitado por alguém…
...Não só com as amantes, mas em todas as coisas da vida ele sempre era “O VENCEDOR”. E naquele momento, aquela mulher fraca, seminua, uma viuvinha magrela de cabelos pretos que vivia fungando com um rosto acabado, destruído, cansado… Justamente AQUELA mulher, estava agora ali. Dando-lhe um NÃO… Estava sendo magnífico. Foi aí que escutei o primeiro daqueles “barulhos surdos” que se pareciam pedras se chocando com força… Em seguida, um grunhido de agonia e dor. Não era um grito, era um engasgo assustado, derradeiro… Uma frase que nunca terminou… Parecia uma pergunta… “O que voc…”. Agora fico aqui me perguntando… qual seria o restante da frase? Fico me perguntando, enquanto ele está logo ao lado trabalhando… Aguardando um paciente que chega quatro… outro das cinco e meia… e uma amante às seis e meia antes de voltar para os braços de seus amados esposa e filhos perfeitos. Me lembro que quando a briga se silenciou, meu patrão saiu, alguns minutos depois, suado e sem camisa. Segurava firmemente uma bola de cristal de natal (daqueles com uma casinha dentro, neve caindo…), que recebera de presente do filho… Encharcada de sangue. Me olhou, deu de ombros como quem diz: “Que mais eu podia fazer?!”, sem o menor sinal de remorso. Eu estremeci.
Conto: [BREVE RELATO SOBRE MEU PATRÃO ASSASSINO] - Final.
...Nos olhamos por alguns segundos intermináveis e entendi rapidamente que minha resposta àquele “dar de ombros” definiria o destino de minha própria vida. “Posso receber um aumento…?”, perguntei, calmamente. “Claro, o que eu faria sem você?”. Ele disse. – E então nos livramos do corpo, juntos. É impressionante nesse mundo cão, como certas pessoas são facilmente esquecidas. Ninguém perguntou, ninguém investigou direito… E ninguém perguntará. E cá estou eu organizando pastas e subpastas (o dia está tedioso). Inclusive hoje é domingo e eu nem preciso MESMO estar aqui. Mas não há nada pra mim lá fora. Não restou ninguém… Minha felicidade consiste em ficar aqui recepcionando pessoas e organizando a vida do monstro na sala ao lado. Pois esse monstro me paga um salário. E ele me elogia às vezes. E sabe o meu nome… Talvez no fundo eu queira ser uma das amantes dele. Uma paciente, uma prima, uma amiga? Talvez isso eu já seja e talvez seja a única… Ou então sou apenas a pessoa que ORGANIZA AS COISAS. A pessoa que lhe possibilita estar em todos os lugares, no horário correto e sustentando todos os álibis. Ele está aqui ao lado, bem pertinho de mim… está muito quieto ultimamente. Acho que sente falta da Dona D. Acho que meu patrão, sente sim. Muita falta daquela mulher…