A DOIDA (BVIW)
Maria girou o ferrolho da pesada porta de jacarandá. O interior do velho sobrado exalava um cheiro sufocante de mofo. Pudera, desde que dona Celestina fora morar com a filha em Barcelona, o local nunca mais havia visto a luz do sol. Maria até tinha se oferecido para cuidar de tudo, mas a antiga patroa não queria ninguém mexendo nas coisas dela.
Naquela semana, Isabel havia mandado notícias. A mãe não voltaria mais: estava morta e enterrada em terras espanholas. A herdeira ordenou que Maria limpasse todo o casarão. Uma corretora ia vender a propriedade. Maria subiu as escadas de madeira, que estalaram num ruído seco. O sótão, atulhado de badulaques mostrava um cenário desolador de pó e desordem. Ao levantar a tampa do velho baú, ela deu com o espelho. Que peça magnífica! O objeto oval, com moldura talhada em bronze e cabo cravejado de brilhantes encheu os olhou da arrumadeira. O espelho era uma joia e devia valer uma fortuna. Não teve dúvidas: ia levá-lo.
A noite caía, quando Maria cerrou o portão de grades da mansão. Caminhava rente ao muro, apalpando amiúde o volume sob o casaco xadrez. Sorriu. Aquele espelho tinha destino certo: a loja de antiguidades do velho Afonso. Depois do banho, ela se acomodou nos travesseiros. Empunhou o espelho, olhou-se, e o que viu a deixou estarrecida: em vez do próprio rosto, ela deu com as faces maceradas e os cabelos desgrenhados de dona Celestina, que lhe sorria sarcasticamente. Perdeu os sentidos. Acordou no dia seguinte imersa em confusão. Do espelho nenhum vestígio. Desde então passou a viver de jeito esquisito, vagando pelas ruas da vila, a repetir coisas estranhas. Aos poucos foi deixando de ser Maria. Era só a “doida”.