Ocorrência no Passo dos Guedes

Guedes é um sobrenome muito comum por esses lados. É como se todo mundo fosse meio aparentado, pelo menos no tronco dos primeiros Guedes que se vieram instalar por aqui. Pois então que foi com o Gordo Guedes, o da loja, que aconteceu a coisa toda. Um sujeito pacato e que não tinha muitos amigos, apesar do ofício. Talvez eu fosse um dos poucos a saber alguma coisa dele. Casado com a Dona Chica, uma mulher adoentada e de muita reza. E gorda como a maldade. Aqui dobrando, a casa do primo dele, um boa-vida que vive às voltas com rinha de galos e algum contrabando. Apesar de primos e vizinhos, mal se olham. De minha parte, nada contra nenhum deles, me avisto bem com os dois. Mas foi com o Gordo Guedes que se deu a coisa toda. Pois o senhor sabe, às vezes eu encontrava o coitado na casa da castelhana, lá na baixada. No meretrício, o senhor sabe. Pois quando ele se enchia das rezações da Dona Chica, acho eu, se atirava no sofá da castelhana. E ia sempre com a Maria Rita. Ficava esperando, se fosse o caso. E muitas vezes era o caso, o senhor sabe, era uma das mais jeitosas do lugar. Tinha muito cliente de repetição, e contam que uns pediram casamento pra ela. E ela se ria disso, com aquela boca encarnada e os dentes de baixo acavalados. Um dos mais que mais visitava a Maria Rita era o delegado Ramirez. Sempre com ela. O delegado era meio fura-fila, o senhor sabe. Autoridade, não é? Mas ele era risonho, chegava sempre com alarido, cumprimentava os outros e mirava todos com cara tranqüila. Tomava uma cerveja ou duas, contava uns acontecidos e só depois se ia com Maria Rita. Bem diferente do Guedes, que chegava quieto e sentava sempre do mesmo jeito e no mesmo lugar do sofá. E pedia por ela em seguida. Vez que outra a mirada dele ficava duelando com o delegado Ramirez. Cara fechada e feia, mas sem dizer palavra. E quando estavam os dois, não importava quem chegasse primeiro, a Maria Rita abria o riso pro Ramirez. Mas o Guedes esperava quieto. Essas coisas eu sei porque vi, ninguém me contou. Por aqui me tiram pra bobo, e tenho alguma atrapalhação de nascença. Não preciso negar, não acolherei letra em escola, não dei pra coisa. Mas alguma conta de soma e diminuição me valeram esse trabalho aqui na casa da castelhana. Isso e esse corpo de bom tamanho, como o senhor pode ver. E a coisa toda que aconteceu deixou todo mundo triste, foi uma coisa muito bruta. Acho que começou com o Guedes vindo mais seguido. Passou a visitar a casa da castelhana quase todo dia. Vez que outra ficava mais tempo, mas o normal dele era não se demorar mais que a precisão. E num meio de noite, o Gordo Guedes já tinha se ido há tempos, o Ramirez fez uma conversa que escutei um pedaço, enquanto servia bebida pros fregueses. E foi quando fiquei sabendo que a coisa ia se complicar pro Guedes. Pude ouvir com todas as letras. E no outro dia deixei escapar pro pobre do gordo. Juro pro senhor, não imaginava que a coisa tomasse esse rumo. O Guedes não abriu a loja no outro dia. Tudo que era janela fechada. Nem fresta. Até que ele saiu, no meio da tarde, chapéu e casaco, passo firme. Quando viu o delegado no café da praça, enviesou as pegadas direto pra ele. E foram três tiros, um emendado no outro, parecia eco. Que coisa feia, isso tudo. A morte do doutor Ramirez, e depois essa morte do Guedes na cadeia do distrito. A cara desfigurada, muito dente faltando e a corda. Se matou, o pobre. O senhor sabe. Pois então. E a última vez que escutei o doutor Ramirez foi naquela conversa, a que eu escutei pela metade. Depois fiquei sabendo que ele ia prender era o outro Guedes. O das rinhas. Pois eu lhe disse que esse é um nome muito comum por esses lados.