Escreva, Renato, escreva

Conforme Renato caminhava pelas ruas de Cabo Frio à noite, as sombras o perseguiam. Ele as via, vez ou outra. Nos cantos dos olhos, por cima do ombro. Às vezes chegavam perto demais, prestes a envolver-lhe os braços com dedos esquálidos, escuros. Alguns transeuntes passavam por ele, despreocupados e pensativos. As sombras não os incomodavam, mas Renato as via e fugia em passos largos.

Seu crime não era segredo para elas. Mais cedo, na mesma noite, ele havia cometido seu primeiro assassinato. A recepcionista do hospital não esperava uma canetada em sua garganta. Uma arma tão inconspícua, mas que fora escolhida conscientemente pelo criminoso. Renato não era apenas o autor daquele ato hediondo. Era, também, o autor de livros tão hediondos quanto. E as sombras assistiram a tudo.

“Você é um autor de qualidade, Renato.”

A voz que lhe dizia isso todos os dias não era um sussurro. Era alta e clara, e orgulhosa. Falava com a propriedade de um crítico literário. Porém, somente Renato podia ouvi-la, assim como somente ele tinha conhecimento das sombras que o perseguiam. Como podia ele ser louco, quando era o resto do mundo que ignorava estímulos audiovisuais tão óbvios?

O cansaço o fez deitar-se num banco próximo à praia. As sombras pairavam ao seu redor, mas ele não se importava mais. Havia alcançado o lugar onde passou grande parte de sua adolescência e, se seu destino fosse a morte, que morresse ali mesmo. Porém, não veio morte, nem sombra, nem ninguém para incomodá-lo. Veio somente a voz amigável e familiar para confortar seu sono.

“Durma bem, doce príncipe. Você merece. Fez um ótimo trabalho. Amanhã, de volta aos manuscritos.”

Obediente, logo após ter suas pálpebras penetradas pelo sol litorâneo, Renato pegou o monte de papéis que trazia dentro da jaqueta de couro surrada. Ele tentou usar sua caneta da sorte, mas já estava inútil, após ter sido batizada no sangue inocente de uma mulher. Irritado, o jovem a arremessou em direção à praia, onde uma turista solitária tirava fotos do mar.

O mar estava sempre lá, copulando com a areia dia após dia, toda bendita hora. O ritual já não tinha novidade alguma. Não era interessante. O mar de Cabo Frio não era bonito. Qual era o grande atrativo? Renato crispou os lábios e franziu o cenho. A mulher era, sem dúvida, do interior. Nunca havia visto água salgada, nunca teve as narinas atiçadas pela maresia.

Ele caminhou até parar ao lado dela. Lado a lado, próximos como estavam, para o resto do mundo, eram um casal. Ela via a manhã através da tela de sua câmera digital. Suas sobrancelhas mal feitas uniam-se sobre seu nariz, uma ponte capilar. Cobriam seus olhos pequeninos, incomodados pela claridade. Ela não ligava para nada além de suas fotos. Renato sentou o punho no queixo da moça. Não houve grito, nem luta. Ela caiu na areia como se houvesse perdido a vida.

O rapaz tinha dinheiro suficiente no bolso para alugar um quarto numa pousada. Sem camisa, deitou-se na cama e limpou tudo o que havia naquela câmera. Fotos de férias, de festas, de crianças e velhas. Todas foram apagadas daquele cartão de memória. Esse espaço todo seria reaproveitado para que Renato pudesse depositar seus pensamentos ali. Ele conversava com a câmera e ela o ouvia com toda a atenção do mundo. Ela o fazia sentir-se interessante e especial. Ele acreditava nela. Ela estava entre seus melhores amigos, junto ao espelho, e à voz em sua mente. Ele não tinha ninguém desde seu divórcio, mas não precisava de pessoas. Tudo o que precisava era de si mesmo, seus pensamentos profundos, seus textos impecáveis. Pouco importava se fossem uma merda. Consertá-los era o dever de um editor. Renato era um artista, que apunhalava a si mesmo no peito com uma caneta e deixava seu sangue escorrer sobre o papel.

“Escreva, Renato. Escreva. Portas e pernas se abrirão para ti.”

As sombras nunca mais o perseguiram.

Felipe Tavares Teixeira
Enviado por Felipe Tavares Teixeira em 07/06/2023
Reeditado em 20/06/2023
Código do texto: T7807649
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