Não precisa ficar agradecendo

Enquanto saia do estacionamento do shopping, Anderson reiterava mais uma vez:

- Paulo, obrigado mais uma vez por ter me trazido.

- Dedê, você não precisa me chamar de Paulo nem ficar me agradecendo de dez em dez minutos - disse em tom afável, pedindo a cizânia de tamanha reverência.

O silêncio reinou após a represália.

- Você gostou do filme? - perguntou Paulo.

- Gostei, Pa... Digo... Cabeça.

- Eu lamento que os anos têm sido difíceis.

- Cabeça, não existem anos naquele inferno. Não existem horas, dias, meses ou anos. Dentro daquele inferno chamado de cadeia, perde-se toda e qualquer noção sofisticada de tempo. Ser preso não é só perder a liberdade, é perder a civilidade.

- Sei... Pelo menos você consegue sair de vez em quando. Aliás, quando você precisa voltar?

- Amanhã.

- Precisa de uma carona?

- Eu já tenho uma carona para voltar para aquele inferno.

- Que bom. Digo... bom que... que conseguiu alguém para te levar de volta... não estou querendo dizer que é bom você... você voltar para lá - disse Paulo, escorregando entre as palavras.

- Não precisa ficar explicando, eu entendi - disse Anderson, rispidamente encerrando esta parte do diálogo, dado o constrangimento, mesmo sendo uma pessoa usualmente educada.

- Qual foi a parte do filme que você mais gostou?

- Eu não sei. Eu nunca presto atenção no filme. Quer dizer... no começo eu prestava quando eu comecei a ter direito de sair, me emocionava com os arcos de redenção, com a finitude dos problemas. Mas depois... mais depois - disse com os olhos marejados - eu passei a contemplar com mais profundidade as próprias salas de cinema. O ar condicionado que torna o ambiente agradável, as poltronas acolchoadas, as paredes aveludadas que tornam o ambiente mais propenso à audiência, o carpete que é regulamente limpo. E principalmente - engolia o choro, pausando o discurso brevemente - principalmente, poder ir a um banheiro na hora que eu preciso ir ao banheiro. Paulo, obrigado mais uma vez por ter me trazido - encerrou a frase com voz de quem corporifica gratidão.

- Dedê, você não precisa me chamar de Paulo nem ficar me agradecendo de dez em dez minutos - disse em tom afável, pedindo a cizânia de tamanha reverência.

[Leitor, cumpre a minha missão como fio condutor deste conto, pode me chamar de Chimarrão, a propósito, explicar o que se sucedeu aqui. Anderson é um ex-professor que acabou caindo no crime depois das mortes dos pais. Sem dinheiro e sozinho, começou a interagir em aplicativos de relacionamento com identidades falsas, em um primeiro momento para ter qualquer tipo de interação afetiva, mas eventualmente acabou enveredando na prática de estelionatos. Seus amigos de escola, dentre eles Paulo, se sensibilizaram com sua história de vida, sua decadência e com sua solidão, e se jungiram em um grupo que oferece a ele essas formas de assistência, desde visitando ele na penitenciária até levar ele para ter algum contato com a civilização nos momentos de saída temporária. É realmente triste o estado de abandono que uma pessoa consegue experimentar.]

Chimarrão
Enviado por Gabriel Figueiredo em 06/06/2023
Código do texto: T7806677
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