E AGORA POETA?
Promovido! Bruno Daza havia alcançado o mais alto cargo em sua empresa. O mais intrigante é que ele era jovem demais comparado às pessoas que já ocuparam aquele cargo, pois tinha conseguido fazer em cinco anos o que as pessoas comuns faziam em 50! Uma vez perguntaram a ele como ele tinha conseguido obter sucesso em tão pouco tempo, ele disse:
– É preciso ser mais que um homem comum, é preciso ser extraordinário...
Estava decido a ser extraordinário, acreditava que o tempo passa rápido demais e por isso não tinha o direito de ser imprudente e insensato. Tinha apenas 20 anos, sua família era uma das mais ricas da sociedade, mas mesmo assim tinha começado a trabalhar aos 15, como faxineiro (Pois queria ter o alívio na consciência de olhar na cara de seu futuro filho e lhe dizer que tinha conseguido tudo por si mesmo e só por meios honestos, por isso fez um grande esforço, até converter-se por dentro e por fora no homem que havia sonhado para si desde a infância), então foi crescendo rapidamente, sem passar por cima de ninguém, nem usando a influencia de sua família, mas foi por justa competência que chegou ao cargo de Presidente Geral e com alguma sorte também.
O mais impressionante sobre a sua sorte era que ela nunca acabava. Tudo nele era correto e fácil, como se tudo tivesse sido seu desde sua origem e tinha umas pestanas de sonhador que faziam suspirar as próprias pedras. Sempre fora grande demais para a sua idade, seus amigos diziam que seu dia tinha que ter 36 horas por que ele tinha tantos compromissos que era impossível imaginar como conseguia comprílos. Talvez tivesse mesmo, pois ele vivia de tal maneira que ainda lhe sobrava tempo suficiente para se viver.
Tinha muitos amigos e estes o convidavam para festas, reuniões, palestras. Bruno Daza era popular, sabia conservar uma amizade, sabia dar conselhos, sabia o caminho para ser feliz e nada lhe perturbava os sonhos! (Até conseguia suportar com certa paciência os marmanjos correndo atrás de pipa na rua, os retardados tocando funk até tarde, e nem lhe doía tanto os olhos ao ver as roupas penduradas pelo lado de fora das casas da favela.).
E seduzidas por suas graças pessoais e pela certeza da fortuna familiar, as moças de seu meio faziam rifas secretas no jogo de ver quem o prenderia e ele também fazia suas apostas com relação às moças, e gostava de viver assim: Ele fingia que não sabia que elas gostavam dele e elas fingiam que não sabiam que ele sabia que elas gostavam dele! E conseguiu manter-se em estado de graça, intacto e tentador, até que sucumbiu sem resistência aos encantos plebeus de Remédios: A bela!
Foi numa das tantas festas em que era convidado, estava uma noite densa, sem estrelas, mas a escuridão estava impregnada de um ar novo e limpo. A primeira vez que olhou pra ela, achou que tinha suas estações, achou também que tina uma graça especial. Quando olhou de novo, viu que tinha uma aureola de beleza (era linda suave e pura como se pode chamar a melodia da forma!). Da terceira vez não viu mais nada, os céus se misturaram com a terra e o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas, se sentiu sacudido por um abalo sísmico que lhe dilacerou as entranhas, afundou-se num estado de prostração febril, perdeu a consciência e o coração se abriu num delírio sem pudor, deixou-se arrastar-se pela imaginação até um estado de delírio perpétuo do qual não voltou a se recuperar. Então pode compreender por que os homens têm medo da morte e foi atormentado com uma melodia de outros tempos, que lhe provocava uma angústia tão espantosa que se fosse por ela atacado durante a noite, preferiria morrer a suportá-la até o amanhecer. Neste momento se sentiu, não só indigno dela, como de qualquer outra mulher sobre a face da terra.
Ela lhe parecia tão bela, tão sedutora, tão diferente da gente comum e a pouco foi idealizando-a, atribuindo virtudes improváveis, sentimentos imaginários, e ao fim de uma semana a única coisa que pensava era ela. A única coisa que sabia a seu respeito, por meio de um amigo, era que seu nome era Remédios Buendía. Ainda a encontrou em outras festas, mas aquele homem que conseguia falar com fluidez cinco idiomas e capaz de discutir com Reis os assuntos da moda, sem perder a compostura, quando se aproximava dela, era sempre a mesma coisa, o mesmo desalento nos joelhos, o mesmo arrepio na pele e o mesmo desamparo de esponja nos ossos. Em um desses encontros ele esbarrou de propósito nela, só para sentir o seu corpo e sentiu que o mundo se apagava em contato de sua pele e naquela noite, já não soube em que momento começou a flutuar.
E quando o despertou o sol indesejável da manha sem ela, em todos aparecia Remédios transfigurada: Remédios no ar soporífero das duas da tarde, Remédios na calada respiração das rosas, Remédios na clepsidra secreta das mariposas, Remédios no vapor do pão ao amanhecer, Remédios em todas as partes e Remédios para sempre!
Perdeu a serenidade e se tornou silencioso e definitivamente solitário. Sua mãe, Ursula Daza, percebeu a sua perturbação. Ela conhecia aquela doença e interpretou a perturbação apenas como os sintomas do amor, mas ele foi ficando pior, o corpo também começou a ficar doente, ficou com aspecto amarelado, perdeu o apetite e parecia que já não era deste mundo. Então ela compreendeu que aquilo era algo mais serio que os simples sintomas do amor e mandou vir o médico da família, um dos melhores do país, mas o exame revelou que ele não tinha febre, nem dor em nenhuma parte, mas a única coisa que sentia de concreto era uma necessidade urgente de morrer.
Ursula não podia acreditar que seu filho gostava de uma plebéia, dessas que consagram sua vida à perda de tempo. Ouviu falar de um psicólogo que curava essa doença e resolveu que mandaria o filho para a França, para um tratamento intensivo de dez meses. Ele aceitou, pois queria esquecê-la também por que tinha saudades do tempo em que o amor ainda não o havia desgraçado. Foi embarcado no primeiro avião com destino a Paris e lá ficou numa clínica especializada. Mas à medida que o tempo passava percebeu que o desejo de esquecê-la era o mais forte estímulo para se lembrar dela.
Ao fim do tratamento sentia tanta saudade de sua casa, da fragrância dos jasmins, da correria da Av. Paulista, de dormir com o barulho da chuva e principalmente de Remédios Buendía! Voltou atormentado pela certeza de não haver encontrado nenhuma solução para o problema, e sim o contrário: novos e variados problemas para solução nenhuma. Quando chegou, sua mãe o estava esperando, pouco depois, derretendo-se de calor junto a ela no carro fechado, não agüentou mais a inclemência da realidade que se metia aos bordões pelo postigo, quando voltou a ver do carro os mesmos marmanjos cada vez mais marmanjos correndo atrás de pipa na rua, os mesmos retardados cada vez mais retardados tocando funk até tarde, cada vez mais casas com roupas penduradas do lado de fora e era impossível encontrar a fragrância dos jasmins por trás das emanações mortais dos esgotos abertos. Tudo lhe pareceu mais mesquinho, mais indigente e lúgubre do que quando partira. Do longo caminho do aeroporto até sua casa, não viu nada que lhe parecesse digno de suas saudades. Derrotado, virou a cabeça para que a mãe não o visse, e se pôs a chorar em silêncio. (Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício é possível suportar o passado).
Ainda viu Remédios no mesmo dia, ao acaso, sem qualquer aviso prévio do coração, quando olhava pela janela de sua casa, viu que ela passava na rua com uma fluidez tão natural que parecia que estava num mundo só seu. Achou-a mais bela e viçosa do que nunca, mais irrecuperável como nunca. E ficava pensando em mil maneiras de se jogar na frente de uma bala que ia para ela, em mil maneiras de ser atropelado no lugar dela e em mil maneiras de entregar a vida só pra que ela pudesse viver (por acreditar que não havia maior honra do que morrer por amor) e já não sabia de ciência certa onde acabava a realidade e onde começava o sonho.
E então quando nenhuma posição já não era boa para se dormir e quando se tornou insuportável o simples fato de estar vivo, ele conpreendeu que tinha que ir procurá-la ainda que não fosse capaz. Tinha uma festa no dia seguinte e foi decido a falar com ela, um amigo fez o favor de apresentá-la e ele a cumprimentou com um beijo no rosto (como se cumprimentam os adolescentes dos tempos modernos) e novamente confirmou seu presságio que o mundo se apagava em contato de sua pele e ficou imaginando como podia o mundo inteiro não ficar louco de amor com os ventos de sua trança, o vôo de suas mãos, o ouro de seu riso. Mas rapidamente voltou a tornar a si, pois sabia que certas coisas na vida só se têm uma chance, então começou a falar com ela, e ficaram conversando a festa toda e teve momentos que teve que morder a língua para que a verdade não lhe saísse pelas inúmeras goteiras que tinha no coração. E ao longo da conversa as mãos foram se aproximando até se encaixaram tão perfeitamente que parecia que foram feitas na medida, um para o outro. Ele sentiu que sua mão era tão macia e se pudesse ficar ali o resto da vida segurando aquela mão seria o homem mais feliz deste mundo. Então a festa acabou e eles se despediram e ela lhe disse:
- Gostei muito de te conhecer!
Naquele dia ele não conseguiu dormir, se sentia tão feliz, sentia a satisfação de um homem imortal. Sua vida mudou o amor “correspondido” lhe havia dado uma segurança e uma força que não conhecia antes. Então decidiu não perder mais tempo e dizer tudo o que tinha guardado na garganta e soltar a alma pela boca de uma vez! Mas ficou com medo de esquecer o texto ou perder a voz como acontecera anteriormente e decidiu escrever uma carta, já que tinha certa facilidade em escrever textos. Era um poeta talentoso, já tinha escrito textos muito bons, mas não se contentou em escrever usando só o seu talento e pegou os livros dos poetas e dos escritores mais famosos de todos os tempos. Demitiu-se do emprego e começou a estudá-los dia e noite sem dormir um segundo, nem recebia mais os amigos, comia uma vez por dia e vivia num mundo próprio. E os dramas tantas vezes relidos recobravam a magia original quando substituía os protagonistas imaginários por conhecidos seus da vida real, e reservava para ele mesmo e para Remédios Buendía os papéis dos amores impossíveis. Ao fim de três meses tinha feito uma carta que se fosse publicada poderia ser considerada uma das mais sublimes obras literárias de todos os tempos e que obrigava até a mulher mais insensível a dar, pelo menos, uma resposta digna.
Tinha tanta certeza na resposta que comprou uma casa com cama de casal, e mandou fazer um terno sob medida para o casamento, já tinha até escolhido o lugar onde iam casar e passar a lua de mel. Soube que ela ia estar presente em um baile no fim de semana e quando chegou o dia vestiu seu melhor terno, seu melhor sapato, seu melhor humor, sua melhor alma! No meio do baile a encontrou no corredor, a cumprimentou e lhe entregou o abscesso que tinha sido o sustento de sua vida e disse:
- Quero que leia e pense com carinho na minha proposta.
Mas ela abriu ali mesmo, leu o primeiro parágrafo e a jogou nas chamas do lixo sem sequer dar trabalho de rasgá-la e disse:
- Bruno, como você é bobo!
E ele segurou à voz que lhe fugia, a vida que se esvaía, a memória que se transformava num pólipo petrificado e os céus desmoronaram-se em tempestades de estrupício e o norte mandava furacões que destelhavam as casas, derrubavam as paredes e arrancavam pela raiz até os últimos talos das plantações, o solo tornou-se mole e úmido, como cinza vulcânica, e a vegetação fez-se cada vez mais insidiosa, e ficaram cada vez mais longínquos os gritos dos pássaros e a algazarra dos macacos e o mundo ficou triste para sempre...
E andava por ai, sem saber por onde continuar a vida, mais morto que um morto, dizendo palavras que não saiam dos lábios e fazendo sinais misteriosos que não correspondiam aos seus gestos num mundo de solidão e esquecimento vedado aos vícios do tempo e dos maus hábitos. E já não soube em que momento, nem em virtude de que forças adversas, seus planos foram emaranhando numa teia de pretextos, contratempos e evasivas, até se transformarem em pura e simples ilusão. Encontrou-se, de repente, perdido nas próprias ruas, perguntando-se, assombrado, como tinha feito para chegar a aquele abismo de desamparo.
O tempo acabou de desarrumar as coisas, ficou sabendo que ela ia se casar, no primeiro momento não pode acreditar, até que viu os dois se beijando numa praça as quatro da tarde de uma terça-feira modorrenta, e ficou ali tremendo de surpresa e pavor, sem poder acreditar na evidência. Essa visão o dilacerou, mas não fez nada para reprimi-la, pelo contrário: desfrutou sua dor. O que mais o intrigou foi que seu futuro marido seria Phelipe Martins, ele o conhecia, era um desses marmanjos que ficavam correndo atrás de pipa na rua e um desses retardados que tocavam funk até tarde e morava numa daquelas casas da favela com as roupas estendidas do lado de fora. Andava sempre com um boné de aba reta e gostava de se aproveitar das menininhas da cidade. Tinha dois filhos, os dois com mulheres diferentes. Estudou até a oitava série e trabalhava como moto boy ganhando um salário mínimo por mês.
Ficou pensando como aquele homem tinha conseguido transpor as barreiras de concreto do coração de Remédios, pensava no que aquele homem poderia lhe fazer que ele não o fizesse dez vezes melhor. E sua indignação foi maior ao saber que ela se sensibilizou com uma pichação que ele fizera num muro, onde ele escreveu o nome dela e por isso ela resolveu dar-lhe uma chance.
Então chegou o dia do casamento. Sabia que ela se casava o ser que mais a amava e haveria de amá-la neste mundo, não teria sequer o direito de morrer por ela. No outro dia despertara as cinco da manhã, como desperta um condenado a morte na madrugada da execução, e em todo o dia nada fizera além de imaginar minuto a minuto cada uma das fases das núpcias de Remédios Buendía. Pensava também em como o destino é safado! Ele fez o mais sublime poema escrito na língua dos anjos para poder gravá-lo em sua alma e ela preferiu um cara que pichou o nome dela num muro! E quanto mais pensava nisso mais raiva lhe dava, e quanto mais raiva lhe dava mais pensava nisso, até que a coisa ficou tão insuportável que lhe afogou a razão.
Ainda tentou negociar com a realidade, mas sabia que a única maneira de esquecê-la era matá-la com sua própria morte, então enfiou a lamina no peito e se matou sem comunhão, sem se arrepender de nada, nem se despedir de ninguém e ainda disse:
- Viver era isto?
E fechou lentamente os olhos.