Confissão
Segurou a faca, limpou a garganta e confessou:
- Matei um homem.
O outro interrompeu alguma coisa que rabiscava no guardanapo e levantou os olhos, congelados no espanto. Foi apenas um instante. No quadro seguinte, a curiosidade lhe assentou calma de bom ouvinte. Seja pelo interesse no drama que seria revelado, seja pela cerveja que o assassino confesso lhe pagava, pediu detalhes.
- Detalhes? Que tipo de detalhes?
Encheu o copo para melhor degustar a história. Fez uma pequena lista de exemplos.
- Ah, sim. Eu o conhecia. E conhecia muito bem. Eu acho… Como o matei? De todos os modos imagináveis. Matei-o por dentro. De dentro pra fora.
As respostas eram mais frias que a cerveja. E estranhas. O outro rabiscou um pouco mais o guardanapo e indagou sobre como seria matar alguém pelo avesso.
- Vou lhe contar desde o início.
Chamou o garçom e pediu outra rodada. A história parecia longa.
- Estamos nos conhecendo agora. Então, você deve estar fazendo uma péssima imagem de mim.
O outro, sem tirar os olhos do guardanapo, negou de cabeça baixa.
- Mas não tem problema. Não faz diferença.
Colocou cerveja em seu copo com cuidado para não fazer espuma. Certificou como o paciente ouvinte gostava de cerveja e o serviu.
- O cara que eu matei também gostava assim, com bastante espuma.
Secou o copo numa golada. Limpou a boca com o dorso da mão. Respirou fundo e foi à infância buscar a história:
- Eu o conheci ainda criança. Acho que tinha três ou quatro anos. Na época, ele fazia seus primeiros traços. Sempre gostou de desenhar e foi se tornando cada vez melhor. Quando desenhava, suspendia o próprio tempo. O desenho lhe tirava o mundo e, com ele, o tempo. Vagava em contornos e cores em ausência dos instantes. Todos, inclusive eu, elogiavam muito o seu talento. Estava tudo certo: cresceria e continuaria desenhando. Mas a vida não é simples como os sonhos. Os sonhos são só possíveis enquanto são sonhos. A vida não é para riscos. Talento não paga boletos. Na vida, não se pode perder tempo.
O outro parou os riscos. Tampou a boca em tentativa vã de etiqueta. Por fim, não se segurou e gargalhou.
- Não entendo do que está achando graça... Não importa. Vou continuar a história. Pois bem, como dizia, minha vítima se perdia na falta do tempo, em seus sonhos infantis. Mas viver é coisa séria. E a vida não espera a gente crescer. Então, para ajudá-lo a encarar a vida, para acordá-lo, rasguei seus papéis e quebrei seus lápis. Esganei-lhe a vontade antes que ela... Sem vontade, ele morreu. Foi assim que eu o matei de dentro pra fora. Exauri sua alma e me apossei do seu corpo. É, reconheço, um corpo sem querer, sem alma. Mas com ele vivi e vivo muito bem, como qualquer pessoa séria. Fui e sou obediente ao tempo, à rotina, aos deveres. Estudei, me formei, consegui um bom emprego, casei, tive filhos. E envelheço de olhos abertos. Não sonho. Prefiro ficar acordado.
O outro gritou uma verdade.
- Você tá louco? É óbvio que não! Ele tá morto! - respondeu, assustado, o assassino. Segurou a faca. Tremia. Soltou-a. Respirou fundo, parecendo inalar todo o ar do lugar em busca de calma. Disse, então, pausadamente:
- Não é você. Não é. Ele tá morto. Ele tá morto.
O outro lhe mostrou o desenho no guardanapo como prova de que era ele sim a inexistente vítima. Na imagem, havia dois relógios de pulso unidos por uma corrente. Os relógios prendiam o imaginário assassino.
- Sou eu! Sou eu! Este do desenho sou eu! - admirou-se.
Olhou os dois relógios que estranhamente usava - costumava acertar as horas de um com o outro e vice-versa.
Tornou a olhar o desenho. Notou que os relógios-algema não estavam fechados. Quis saber por que e o outro respondeu que algema alguma jamais lhe prendeu. Para seus pulsos, entretanto, isso já não fazia diferença.
Examinou por longos segundos a imagem no guardanapo e se convenceu de que estava, de fato, diante da sua desejável vítima. Sentiu-se frustrado com o crime que não aconteceu.
- É você mesmo! É você! Por que me persegue? Por que não morre para sempre? Por que não se sufoca em seus sonhos?
Irritou-se profundamente e quis fugir da própria carne. Pediu a conta. Pagou. Antes de ir embora, gritou a seu confidente:
- Desapareça da minha vida de uma vez! Você não se cansa de se matar em mim?
Algoz e vítima, presente e passado, deixaram o bar, contrários e unidos ao mesmo tempo, no mesmo tempo.
Alguns notaram um velho triste, usando dois relógios e roupas caras. Outros viram um jovem alegre, com aparência de liberdade. Mas todos percebiam apenas um único homem saindo do bar.