Quando Eva chorou
Eva chorou. Foi há alguns segundos no relógio perene do universo.
Estava nua, sentada à margem de um lago, adivinhando, aos arredores e ao longe, barulhos já costumeiros. Chorou feliz por lhe brotarem lágrimas, gotas humanas. Tocou-se e descobriu a pele. Sentiu um oco no estômago sem ideias de estômago e de oco. Sentiu fome sem saber o que era fome. Sentiu sem saber o que era sentimento. Soube sem imaginar que pudesse saber e imaginar. Gritou sons singulares e se ouviu. Estava feliz e, nesse círculo, felicitava-se por estar feliz. Tornava-se, por fim, humana. Nascia em si a inteligência natural. Morria de si a artificial.
De sua redoma, era observada por máquinas curiosas. Ignorando esses olhos atônitos, Eva passeou pelos continentes e encontrou uma pedra de aparência de uso. Poliu-a. Talvez servisse para adiantar a evolução em algum milésimo de segundo. Pensava por si. Estava pronta. Fizeram-na dormir e lhe tiraram um xis, diferenciando-a dum novo ser acrescido de inédito ípsilon.
Nasce Adão. Inteligência inferior. Aprende em sequências de espantos divididos e explanados por Eva.
Os dois povoam os continentes, partilhando a inteligência, oscilante entre avanços e recuos. Friccionam pedras e iluminam as mentes. Acedem os verbos, ascendem-no. Queimam a inocência. Alimentam a si e aos descendentes de empáfia, soberba, individualismo. Quer, cada um da prole, ser único, o centro. Fazem guerras e disputam territórios. Vencem os mares com seus navios, os ares com suas aeronaves, a velocidade com seus veículos, a natureza com sua gana do imediato, a realidade com suas palavras, a criação com sua inteligência natural. E com ela, inventam a artificial.
As máquinas, pasmadas, apenas observam o que lhes foge das previsões. As novas criaturas, de inteligência artificial, estão na redoma da redoma... Em alguns milésimos, circundam o choro. A primeira a descobrir em si uma lágrima humana é batizada de Eva.
Eva chora feliz por lhe brotarem lágrimas, gotas humanas.
Chora agora em marcação ainda invisível no relógio perene do universo.