Veredito
Sentia-se só, nu, sem abrigo, sem chão nem céu, sem espaço nem tempo. Inexistia de si. E nessa ausência, precisava dar um veredito de vida e morte.
O médico lhe explicava a gravidade, a necessidade e a urgência da decisão. As palavras eram blocos de gelo.
Naquela manhã, acordara com os gritos de morte da mulher. No chão do banheiro, um lago vermelho.
- Meu Deus! O que tá acontecendo? - berrou. Da penumbra dos seus olhos turvos, surgiu uma criança com a morte adiantando-se à vida.
Auxiliou a mulher com uma mão e com a outra digitou números trêmulos. A ambulância chegou em minutos milenares.
Ela completava o sétimo mês e a pressa aguçava o tempo. A bebê teria o nome dela. E para que isso ficasse assegurado, ela mesma já havia bordado o nome em todo o enxoval. O quarto, lindamente decorado, era habitado pelo amanhã.
No início do namoro, no ensaio de união das histórias, ela falou sobre o desejo de ser mãe. Disse que sonhava em ter uma filha, que teria o seu nome.
Namoraram por três anos. Separaram. Voltaram depois de dois anos. Casaram em dois meses. Prometeram que nada os separaria. A morte, nem sequer vislumbravam.
Por vezes, o tempo se distrai para a vida acontecer. Foi assim naquela manhã de outubro. Depois de uma noite de trabalho, ele voltou para a casa e encontrou a mulher com sorriso de quem renasce no próprio nome.
- Bom dia, papai.
- Papai?! Sério? Deu positivo?
Ela respondeu com risos, lágrimas, pulinhos e palmas.
O casal economizou no possível para esticar o dinheiro. Além do trabalho como garçom, ele passou a trabalhar como motorista de aplicativo de carona. Fizeram o enxoval no esgotamento dos centavos.
- Preciso que o senhor me dê uma resposta agora! – exigiu o médico num murro de realidade.
Olhou em volta. A brancura do hospital emprestou cor a seu vazio. Leu o aviso de “silêncio” e quis obedecê-lo para sempre.
O médico o encarou.
- Posso pensar? Por favor! - suplicou.
- Não demore.
Teria de decidir. Não tinha mais tempo. Quem seria a maior merecedora de vida? Quem deveria morrer? A mulher teria direito a mais tempo de vida? Ou a criança teria mais direito de iniciar o seu tempo?
De olhos fechados, sussurrou "Renata". Um som tímido, tremido, temido. "Renata", repetiu algumas vezes como uma prece. Não sabia se chamava pela mulher ou pela filha. Imaginou a filha renascida na mãe e a mãe renascida na filha.
Pediu um papel e uma caneta. Mesmo sem entender, o médico disse para a enfermeira lhe dar os objetos.
Mexia os lábios nervosos em três sílabas invisíveis. Fechou novamente os olhos no último esforço para encontrar dentro de si uma milagrosa saída. Abriu os olhos. Ofegou luto adiantado. Com as mãos hesitantes, ajeitou a caneta e o papel. Escreveu alguma coisa. Entregou ao médico. Chorou. Choraria todos os dias.