As cartas de Izolito

- Carteiroooo! – o berro era semanalmente pontual.

- Tô indo, tô indo – o grito do velho costurava alegria e ansiedade.

- Não precisa correr não, seu Izolito. Devagar, devagar… - acalmava, em risos, o carteiro, falando por falar, porque correr, tal como se corre, limitava-se apenas à poeira da memória do velho.

Entregar cartas a seu Izolito reacendia no carteiro uma brasinha de crença na humanidade. Sorria lágrimas. Bonito demais testemunhar ali, do outro lado do portão de madeira, a esperança de tantas idades.

- É do meu filho?

Pergunta desnecessária, mas que precisava, sem dúvida, ser feita. Uma desnecessidade imprescindível.

- Sim, seu Izolito. É sim. É do filho do senhor - confirmava o carteiro em anunciação de arcanjo.

As cartas eram religiosamente semanais, sete dias na extensão de uma vida. E chegavam sempre no mesmo horário, às nove e meia da manhã. Eram respostas das cartas colocadas nos Correios pela professora, que morava na casa da frente. Para corresponder com o filho, Izolito precisou renascer no abecedário. E foi a professora quem o ensinou , respeitando sua cadência alongada.

Não era vergonha ser um velho dessabedor de letras. Mãos boas sempre teve, mas pra enxada; antes pra lavoura, depois pro concreto. A caneta e o caderno estranhariam os calos. Não estudou porque os dias se estreitavam na pobreza. O tempo era pra roçar e ajudar a mãe. Escola não cabia não. Ainda mais sem o pai. Com a morte do pai, Izolito não criançou mais para se esticar num adulto. E a escola se perdeu num futuro que não veio.

Ainda pequeno, Izolito engaiolou duas águias nas meninas dos olhos. Aprendeu a alcançar o lado de lá das aparências. Foi assim que viu que as pessoas são loteadas no mundo antes mesmo de nascerem. Alguns já estavam onde ele jamais esteve e, sempre estando lá, achavam-se donas do lugar. Não precisavam batalhar contra a vida pra sair dos cantos dos ninguéns - e ele tinha um tanto desse nada: na pele preta, na miséria, na iletração.

Cresceu, casou, teve um filho, enviuvou, ficou, fincou-se na casinha... A mulher e o filho, não. Ela, de olhos cerrados, mãos cruzadas, rosto duro e flores. O menino (homem, mas menino para ele), de mochilas com algumas peças de roupa, um endereço de emprego e uma esperança desconfiada. Foi assim que os dois partiram. Desde então, Izolito exauria, dia a dia, o deserto do tempo.

Quando se vive só, os ponteiros ficam empacados e só andam porque uns empurram os outros. O tempo se lesma nas passagens, lerdeza que dilata a dor. E a dor é ainda maior quando a solidão de fora mancomuna-se com a de dentro. É um silêncio oco esse encontro do nada com o nada.

Isso tudo cabia direitinho nas sete letras de Izolito. Um dia, alguém de etimológica esperteza disse ao velho que seu nome significa “solitário”. “Papai sabia das coisas”, concluiu.

Na luta contra o próprio nome, quis a companhia do filho. Mas dinheiro não tinha pra procurá-lo. Talvez pudesse lhe escrever. Poderia se pudesse. Não poderia por não saber. Foi então numa conversa com a professora, que todos os dias lhe dava bons dias e boas tardes, que a história analfabeta de Izolito se apagaria numa outra história.

- Eu posso ajudar o senhor, seu Izolito. Eu ensino o senhor a escrever. Vai aprender a fazer umas cartas bem bonitas pro seu filho. E eu mesma me encarrego de levar as cartas aos Correios. Tenho um sobrinho carteiro. Eu entrego pra ele.

O velho chorou e renasceu nas lágrimas.

Não foi fácil, mas difícil ainda menos. Era aluno aplicado, com dificuldades até os cabelos brancos, não entendia isso, demorava pra entender aquilo… Mas a visão das cartas trazidas do amanhã o cutucava a continuar, e bem continuado. Foi pra lá dos limites e, por fim, aprendeu as tais letras.

Quando as primeiras palavras começaram a brotar, vencendo a aridez e a rigidez do chão dos anos, Izolito ganhou um bloco de papel de cartas da professora. Eram folhas pautadas, com belas imagens de animais na margem inferior.

- Mas olha… mas olha. Coisa mais bonita que nunca vi na vida - admirava-se, não encontrando as mesmas palavras ditas pelo coração. Gaguejou verdadeiro agradecimento.

Izolito começou a rascunhar a primeira carta, ainda não no papel sagrado do bloco… Gastou uma manhã inteira de ideias. Entregou, faceiro, para a professora ler e corrigir.

- Seu Izolito, parabéns pela carta. Está muito bonita - parabenizou a professora, informando apenas que “saudade” é com “u” e não com “l”.

Ele passou a limpo sem atenção ao tempo e com cuidado de uma cirurgia complexa. A tinta da caneta beijava a superfície do papel em minúsculos encontros demorados de cada poro, de cada traço, de cada letra.

No dia seguinte, a professora levou a carta aos Correios. Passou-se um dia, passaram-se dois, três, quatro… uma semana, duas… um mês…

- Bom dia, seu Izolito. E a carta, já chegou?

- Bom dia, professora. Pois é, sobre isso mesmo que eu queria falar com a senhora. Será que o sobrinho da senhora, que é carteiro, não sabe por que tá demorando tanto pra chegar a resposta do meu filho?

- Eu vejo com ele, pode deixar. Mas o senhor tem certeza que o endereço tá certinho?

- Sim, tá escrito no papel que meu filho deixou aqui. Tá certinho.

A professora falou com o sobrinho. Demorou mais uma semana e a tão aguardada carta chegou. Izolito foi à casa da professora com a carta nas mãos e derramou agradecimentos.

Na carta, o filho pedia mil e tantas desculpas, dizia que teve dificuldade para encontrar um papel tão bonito quanto o do pai, que iria visitá-lo o mais breve possível, que se esforçaria para responder com rapidez para que pudessem ter notícias um do outro todas as semanas, etc.

- Seu Izolito, que estranha coincidência: o papel dele é igualzinho o do senhor - a professora observou.

- Pois é... Que belezura, né? Achei muito bonito isso.

Além do papel idêntico, a letra era parecida a do Izolito, desenhada com capricho semelhante.

E assim, semanalmente, chegava uma nova carta a Izolito.

A comunicação com o filho reanimou o velho, que começou até mesmo a fazer caminhadas matinais. Em sua atividade, tinha o costume de passar pela rua dos Correios. Era um modo de acalmar a ansiedade.

Com as cartas, a vida de Izolito ensinava à mecânica dos ponteiros o que é tempo de verdade. As cartas foram as linhas finais de 93 anos. Depois de sete meses das primeiras correspondências, Izolito caiu gravemente doente. O estranho barulho foi ouvido por um vizinho, que chamou socorro.

Durante as semanas de coma de Izolito, a professora, com uma rede de ajuda, conseguiu localizar o filho dele. A referência inicial foi o endereço repetido nos envelopes de todas as cartas. O então morador indicou alguém, que indicou alguém, que indicou alguém... que, por fim, informou o paradeiro do filho.

O rapaz chegou a tempo de ver o pai libertar as duas velhas águias de seus olhos.

No velório, o filho não saía do lado do caixão. Parecia querer preencher o oco do tempo. Seu silêncio foi interrompido pelo carteiro, que lhe falou ao ouvido. O carteiro chamou o rapaz a um canto e lhe disse:

- Estive na casa de seu pai. Fui lá com minha tia, que era grande amiga dele. Eu encontrei suas cartas. Estão aqui. Vou devolvê-las.

- Minhas cartas!? - espantou-se.

O carteiro, também espantado, confirmou:

- Sim, suas cartas... as que você escreveu pro seu pai.

- Mas, mas… Como assim? Eu não escrevi nenhuma carta pro meu pai.

Sem nada entender, o carteiro retirou de sua bolsa um amontoado de cartas. Entregou-as ao rapaz. No mesmo instante, uma pessoa o chamou, dizendo que havia uma encomenda deixada pra ele. Foi verificar. Era um pacote. Abriu-o e viu mais cartas. Nos envelopes, havia o nome de Izolito na linha do remetente. No verso, o seu nome e o seu primeiro endereço. Ficou muito confuso. Procurou a pessoa que o avisou do pacote, mas ela não soube dizer quem o havia deixado. Ninguém soube informar. Suspeitaram que alguém havia colocado a encomenda no local secretamente.

- Não entendo, não entendo - sussurrou.

Depois do enterro, o rapaz foi à sua antiga casa, habitada pelos fantasmas do pai e da mãe. Circulou pelos cômodos, prendeu-se a detalhes, chorou recordações. Olhou o velho relógio na parede, o mesmo de sempre. Estava parado e marcava nove e meia. “Deve ter acabado a pilha”, cogitou.

Sentou-se e fechou os olhos para ver o que não poderia enxergar com os olhos abertos. Na solidão, a mesma que acompanhava o velho Izolito, entregou-se às lembranças: terras jogadas com as mãos no caixão, o cortejo, o silêncio de respeito dos minguados amigos, o choro do carteiro, a tristeza pura da professora… Recuou os dias, chegando à infância, à adolescência, à mãe, ao pai, à vivacidade de outros tempos.

Abriu os olhos e os envelopes. Com o testemunho das ausências recente do pai e antiga da mãe, leu carta a carta. Pegava-as aleatoriamente, mas todas se juntavam em um curso lógico do tempo. Seus olhos desaguavam ausência e desejavam, nas cartas, a quietude de âncora. Foi preenchendo o vazio que o consumia havia anos. Cada palavra e cada frase de cada carta foram recompondo-os de presença. Ainda assim, não podia refazer o passado e remendar os rasgos do tempo.

Quis dar forma à dor. Pegou uma caneta e o bloco de papel de cartas do pai. “Meu paizinho”, iniciou assim. Pediu ao pai que desse um beijo na mãe. Falou muito, muito, de tantas coisas... Depois de escrever por mais de hora, despediu-se:

“Até à eternidade”.

Respirou mudo as lembranças da casa. Contemplou, novamente, as paredes, os móveis, os objetos... Parou a atenção no relógio. Estranhou: estava funcionando. Não buscou nenhuma lógica. Somente aceitou.

O som monótono do relógio parecia querer dizer algo. O rapaz se levantou e se aproximou. Olhos e ouvidos apuraram profunda atenção no movimento circular do tempo. Do curso compassado dos ponteiros, ouviu uma voz, a mesma de suas lembranças, uma voz paterna que lhe respondia:

"Até a eternidade".

Osvaldo Júnior
Enviado por Osvaldo Júnior em 27/05/2023
Reeditado em 27/05/2023
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