A vida como ela será
Durante semanas, várias vezes ao dia, verificava seu email. Desde aquela fatídica noite, em que o encontro não havia acabado bem, não tivera nenhuma notícia. Apesar de estar curioso sobre o que acontecera, negava-se a dar o primeiro passo. Afinal, ele merecia uma explicação.
Enquanto digitava uma petição no notebook, pensava na guinada que sua vida sofrera nos últimos meses. Estava noivo da mulher da sua vida e hoje ela está casada com outro. Era sócio de um escritório de advocacia com clientela seleta e agora aceita qualquer cliente que possa pagar. Tinha uma conta bancária de oito dígitos que hoje se resume a seis. Mas... Estava vivo! Tinha saúde! Iria batalhar para voltar ao patamar de antes. Ainda não tinha a estabilidade financeira de outrora, mas sabia que, mais cedo ou mais tarde, com seu talento como advogado, voltaria a ter a conta bancária recheada. Quanto ao coração, queria se apaixonar de novo, não nascera para ser um conquistador, um homem impulsionado apenas pelos desejos carnais. Movido por esses sentimentos, resolvera entrar no site de relacionamentos. Seu último cliente lhe falara que havia conhecido sua esposa através do site. Animou-se! "Quem sabe?" E ,assim , durante algumas semanas viveu bons momentos. Mas, logo lembrou-se daquela noite, daquele encontro. " Ah, se arrependimento matasse. Como pude me enganar
tanto? Um advogado experiente como eu! Achei que tinha encontrado a mulher perfeita. Daqui a pouco estou acreditando em Papai Noel e Coelho da Páscoa. Que idiota que fui."
No outro lado da cidade, ela verificava pela décima vez ,em cerca de meia hora, seu e-mail (cena que se repetira religiosamente todos os dias nas últimas semanas). "Não é possível! Como pude me iludr tanto? Parecia o homem perfeito! O mínimo que me devia era um pedido de desculpas. Não que eu fosse desculpar, é claro. O que ele fez não tem desculpa. Mas, depois de tudo, me deve uma explicação, um pedido formal de desculpas.". Enquanto estava mergulhada em seus pensamentos, o pequeno Bebeto a chama "Mamãe, mamãe, a condução já chegou!" Sorriu com ternura para seu filho. "Então, vamos. Você não pode chegar atrasado na escola. Comporte-se, viu? " Acompanhou-lhe até a condução e ficou olhando o veículo se afastar, enquanto seu peito começava a sentir saudade.
Desde que o marido falecera, vivia para seu filho. Se antes já era dedicada, multiplicou essa dedicação para tentar suprir a falta do pai. Foi muito difícil para os dois, mas tinham um ao outro. Seus dias resumiam-se a cuidar de Bebeto, administrar o estabelecimento comercial da família e cuidar dos afazeres domésticos. Raramente dedicava algum tempo a si mesma. Apesar de não se cuidar como deveria, tinha uma beleza natural que ainda chamava a atenção dos homens. Vez por outra, aparecia algum pretendente, que ela logo descartava, de início educadamente, depois, se necessário, de maneira firme, beirando a grosseria. A comadre a repreendia "Você é jovem, bonita, precisa refazer a vida. Precisa de um companheiro." Após um tempo ouvindo esse sermão, resolveu dar-se uma chance, mas nem sabia por onde começar. Foi então que a comadre sugeriu o site de relacioanmento . Ela tentou. "E aqui estou eu agora. Pior que antes. Ludibriada por um cara sem escrúpulos que só queria se divertir."
No dia seguinte, tomou uma decisão. Daria o primeiro passo. Afinal , homens dificilmente tomam a iniciativa. "Essa história precisa ter um fim. Preciso saber os detalhes. Será que ele foi contratado por alguém? Ou será algum tipo de vingança? Não posso seguir adiante sem ter essas respostas."
Distante dali, ele tomava seu banho sossegadamente, cantarolando "Quem de nós dois". Enquanto se enxugava , pensava "Por que raios estou cantando essa música?" Após vestir um roupão confortável, foi à cozinha e pegou um copo de leite bem gelado. Intencionava assistir a mais um ou dois episódios de Criminal Minds, antes de dormir. Mas, ao passar pelo notebook, resolveu dar uma última olhada no e-mail. "Ora... ora... então resolveu dar o ar da graça, senhorita?" Abriu a mensagem que se resumia a uma frase. "Precisamos conversar." Um e-mail seco, frio, com apenas duas palavras. "É óbvio que precisamos conversar! Espero que tenha um vocabulário de desculpas e explicações maior que duas míseras palavras." E, para provocar, respondeu com apenas duas palavras. "Quando? Onde?".
"Ah, maldito! Quem pensa que eu sou para me tratar assim? Deixa estar. " E respondeu ainda mais secamente "Próximo sábado. Mesmo local. Mesmo horário!"
"Até parece que estou falando com um robô! Já que você quer assim... que seja". E digitou "Ok".
Os três dias que antecederam o encontro foram terríveis para ambos. Era uma mistura de raiva, indignação e uma incontrolável alegria que nenhum dos dois jamais poderia admitir. Mudaram inúmeras vezes a opinião sobre a roupa que iriam vestir, o perfume que iam usar e, principalmente, as palavras que iriam dizer.
No sábado, no horário e local marcados, chegaram com diferença de poucos segundos. Trocaram um boa noite formal e , com a aproximação do garçom, resolveram fazer logo o pedido antes de iniciar a difícil conversa. Prato escolhido, começaram a conversar amistosamente sobre amenidades. Nenhum deles tinha coragem ou vontade de iniciar a conversa. Estava claro que queriam que aqueles momentos durassem o máximo possível . E se começassem a falar sobre o encontro anterior, provavelmente iriam brigar e a noite terminaria ainda pior que a primeira.
Alternaram momentos de conversa banal e de silêncio constrangedor, durante o jantar. Enquanto ele se perguntava quando ela iria começar a se explicar ( já que marcara o encontro com essa intenção), ela indignava-se mentalmente com a cara-de-pau dele, agindo com cinismo.
Terminaram o jantar, pediram a sobremesa, depois um cafezinho... E, finalmente, só havia duas coisas a fazer: ou iniciavam a conversa ou iam para casa como se nada tivesse acontecido.
"Já vi que vou ter que tomar a iniciativa novamente... Homens!!!". E, então, num tom de voz delicado, mas firme perguntou " Por que fez isso comigo? Não se brinca dessa maneira com ninguém. "
Sem entender as palavras da moça, ele , num tom quase irritado, responde com outra pergunta: "Posso saber do que você está falando? Ou vai continuar com esse jogo de adivinhação?".
"Tudo bem! Vou perguntar com todas as palavras. Por que mentiu dizendo que seu nome era Roberto Rocha? Por que se apresentou usando o nome do meu falecido marido?".
"Mas eu não menti. Meu nome é esse." E, abrindo a carteira, colocou sobre a mesa seu RG, sua CNH, sua carteira da OAB e alguns cartões que comprovavam suas palavras. "Veja com seus próprios olhos. Ou pensa que eu falsifiquei esses documentos?".
Ao olhar o RG, ela observou, além do nome, a data de nascimento. "Não é possível! Isso é impossível!"
"O que é impossível? Ainda acha que estou tentando enganar você?"
"Não é isso! Meu Deus.... Então você é o outro Roberto Rocha... O Roberto dos exames trocados. "
Então, ele se deu conta do que ela havia dito antes. Na ânsia de comprovar seu nome através dos documentos, não dera a devida importância à informação de que ele e o marido falecido da moça tinham o mesmo nome e sobrenome. "Então, naquele dia, era ela chorando sobre o corpo do marido e gritando :Roberto Rocha.".
Os dois sentiram uma mescla de sentimentos absolutamente indescritíveis. Estupefatos com as coincidências, consternados pelo que pensaram um do outro depois do último encontro e, por fim, aliviados por descobrirem que tudo não passara de um grande e terrível mal entendido.
Pediram desculpas e desculparam-se mutuamente, num processo que iniciou com constrangimento e logo foi evoluindo para um clima.agradável . Contaram cada um o seu lado da história, desde como era a vida antes da troca dos exames até o momento presente.
Enquanto conversavam, iam sentindo aquele encantamento de antes ... Os caminhos incompreensíveis que os levaram até ali eram inquietantes, mas , apesar de não entenderem, o brilho nos olhos e o coração acelerado de ambos lhes diziam que a vida é bela e sempre é tempo de recomeçar e ser feliz.