Dona do amanhã
Sempre achei que dentro da dona Teia morava uma aranha. Tive certeza naquele dia quando ela morreu antes de morrer.
Toda vizinhança foi correndo pra ver, ver pra crer. Era uma inexplicação de outro mundo, sem palavra criada. Eu, menino que só, achei graça, depois chorei de medo, depois chorei de pena, depois chorei não sei por quê. Agora choro nas lembranças.
Pelo que contaram e aumentaram pontos do conto, ela acordou, sem ter dormido, congelada em estátua. Culpa do marido, foi o que disseram. Era bruto de violência, em seu tudo pro homem pode, mais ainda naquele tempo de impensáveis leis para a mulher. Também acharam outros culpados, até o diabo, o coisa-ruim. Um sabido falou que era doença desconhecida que nem mesmo ele, sabido, sabia. Teve um adiantado que suspeitou de causas emocionais. Mas todos concordavam que o marido, ah sem dúvida, tinha tudo a ver com aquilo.
O fato é que dona Teia parou. Assim mesmo, com exatas consoantes e vogais: p-a-r-o-u. Ou quase…
Na véspera, tal como apuramos e montamos as peças a gosto de cada um, o marido havia discutido com a dona Teia. Um nada a ver sobre pouco sal no feijão, arroz que ficou papa, onde está o meu cigarro, desliga esse rádio ou faz essa guria calar a boca… Ou qualquer outro desmotivo.
Ela respondeu uma desculpa nervosa qualquer. Quando a mão fechada cortava o ar, a mulher virou pedra. Parou por inteira. O braço do marido também parou - algum campo de força, um escudo invisível, um fenômeno desnatural, impediu o soco. Perto do rosto da dona Teia, a mão violenta se ausentou de tempo, quase contaminando todo o corpo. Não fosse o recuo ligeiro de espanto, o homem também ficaria empedrado.
Passado e não passado o desentendido, prosseguiu o homem a violência na distância segura dos murros de palavras. Cuspia tudo que fosse e não fosse nome. Os xingamentos pesavam os pés sujos de poder, que esmagavam qualquer resto humano da mulher.
Vizinhos já saíam para acompanhar o espetáculo, mais chamativo, esquisito e assustador que de costume. Quando o homem notou o primeiro pescoço comprido no portão, catou do chão uma falsa calma. Respirou e avisou que ia dormir. Antes, advertiu a mulher pra parar com aquela frescura de criança. Os vizinhos enxeridos poderiam dizer coisas.
Ninguém diria nada, nada extraordinário, naquela noite, porque dona Teia escapava da curiosidade. Estava escondida dos olhos, do lado de dentro, mas pertinho da porta, que dava acesso à varanda. O homem não. Ele estava na varanda e, de lá, espancava a mulher com a voz. Era bem visto e ouvido. E ele com isso? Nem aí. Não se importava não.
Dona Teia se chamava Aleteia - significa verdade em grego, como soube depois. Mas Teia lhe cabia melhor. Teia, porque, como disse, havia uma aranha dentro dela. Só podia ser essa a explicação para os oito braços. Sim, sem modéstia conta. Eram dois braços vistos e seis invisíveis. Com os oito braços, ela segurava, empurrava e puxava cabo, alça, pano e esponja, lavava, enxaguava, secava, torcia, esfregava, estendia, varria, carregava, levantava, abria, fechava... nas casas das patroas e na casa dela. Ela inventava vários tempos e juntava os sucessivos nos simultâneos. Fazia tantos concomitantes que não havia relógio para cronometrá-la. As patroas comentavam, nas conversas de salão, da preta esperta e ligeira que nem ela só. Não lhe faltavam faxinas.
Nossas mães também faziam quase isso tudo. Mas dona Teia fazia mais, muito mais, em menos tempo. Só ela tinha oito braços. E, sabe-se lá como, ainda conseguia sorrir. Mas eu percebia, olhando bem no escuro do rosto dela, que aquela feição faceira era, na sua mentira, forçada na vergonha. Vergonha pelo sem-vergonha do marido. Dona Teia, para sobreviver, ignorava a verdade do nome. Ou era o próprio nome, a plena verdade na necessária mentira.
Dona Teia fazia mais que nossas mães, porque tinha, na casa, mais filhos e mais violência. O marido, nunca ninguém soube do que trabalhava. Mas todos sabiam do que não trabalhava. Nos horários das enxadas, sempre segurava um taco, o de sinuca. Também ocupava as mãos com cigarros, copos e corpos femininos.
Dona Teia sorria aos outros na sua não-verdade. Ralhava com os seis filhos, mas também lhes sorria na sua verdade. Permitia-lhes muita rua, de violência menor que a casa. Eu era amigo dos guris e jogávamos bola com golzinhos de chinelos. Um deles era mais bravo e nem dor sentia quando esfolava o pé. Escondia as palavras, mas quando falava, as verdades pupilavam nos olhos. Um dia disse, em tom de solene futuro, que mataria o pai, que era, na precisão genealógica, padrasto. Só precisava ganhar um pouco mais de corpo para cumprir seu desejo. O outro irmão lembrava sempre, com as letras bem colocadas, que o tal era apenas padrasto. Informavam os três - de onze, dez e oito - que o pai de sangue mesmo quase nunca bateu na mãe nem neles. Bebia pouco e batia menos - para não trair a memória, devo dizer que “bebia pouco” era uma maneirinha mitigada dos meninos de aliviar o lado do pai. Eram filhos dele os três que jogavam bola com a gente e a menina mais velha, de doze. As crianças menorzinhas, de quatro e três, eram filhas do outro. Pode ser que eu tenha errado em uma e outra idade, devido às distorções do tempo e das lembranças, mas havia uma escadinha mais ou menos assim.
O mais bravo era o de dez. Foi ele, de estatura pouca pra idade, que saiu atrás do pai na manhã em que descobriram a mãe estatuada. Com ferocidade sem tamanho, sem o tamanho desejado, buscou lá, acolá, mais adiante, no outro canto… e nada do pai.
Naquele dia, o homem acordou cedo e viu a mulher ainda parada. A diferença é que já estava na varandinha, mas ainda próxima da porta. Sempre nos berros e xingações, perguntou, curioso e furioso, o que ela ainda fazia ali parada, se tinha ficado louca de vez. Sem respostas, disse, por fim, que não ficaria num lugar em que é feito de palhaço. Acendeu um cigarro e saiu sem rumo. Não voltou pro almoço. Mas houve alguém que contou, na certeza, que ele voltou, viu muita gente e foi embora pra não ser perturbado.
Chamamos os bombeiros. Riram de nós, mas foram. Tinham curiosidade. Achando tarefa fácil, um deles tentou puxar a mulher. No entanto, a tal barreira invisível o impediu. Sentiu congelar o braço e o retirou depressa. Fez dois em nome do pai e concluiu que não era negócio pra bombeiros não. Foram embora. Procuramos um médico, mas a consulta tinha de ser no postinho. Ele não atendia em casa. Só se fosse casa de madame (ele não disse essa segunda parte, mas a gente disse). Fomos atrás de uma benzedeira. Não negou atendimento. Jamais negaria. Catou umas folhas de arruda, água benzida, incenso e não sei mais o quê, e rumou pra casa da dona Teia. Tentou por horas tudo que sabia. Até pediu ajuda pra outra benzedeira e pra outra e pra outra. Durante a benzeção, alguém jurou ter visto um movimento de início de sorriso no cantinho da boca da dona Teia e todos comemoraram. Silenciados os aplausos e gritos, achamos que teria sido apenas uma ilusãozinha.
Os filhos da dona Teia, tadinhos, dos menores aos maiores, todos choravam. O mais bravo chorava de lágrimas duras, de cara amarrada.
Já à noite, voltamos pras nossas casas, pras nossas vidas. Dona Teia ficou lá. Por dias. Os filhos, orientados pelas benzedeiras, desenvolveram uma técnica para alimentar a mãe. Emendaram canudos em canudos, ligando-os a copos e pratos. O alimento ficava por algumas horas e era trocado. Era alguma sopinha, um suco e muita água de coco, que os vizinhos se encarregaram de doar.
E o marido nada de voltar. Então, os vizinhos começaram a levar comida para as crianças e ajudavam a arrumar a casa. As benzedeiras, dia sim dia não, apareciam para benzer objetos e pessoas. Todos notavam que a cada dia, dona Teia estava mais perto do portão. Ela se movimentava sim, mas numa invisível velocidade. Para alguns, o próprio campo lhe dava forças.
Certa manhã, os filhos de dona Teia acordaram aos gritos, correndo aos vizinhos. Não viram a mãe. Já não estava mais em sua empedrada condição. Não estava em lugar algum.
Dias depois, o marido voltou. Não viu a mulher. Irritou-se. Brigou com os filhos. E o que era bravo lhe respondeu e tomou um safanão. Não chorou. Olhou firme pro homem, que se assustou com a ousadia. Cansado daquilo e ciente das panelas vazias, acendeu um cigarro e saiu.
Na tarde do mesmo dia, dona Teia, assim do nada, apareceu de volta. Sorria de verdade. Estava com roupas novas e trazia uma sacola de compras. Até iogurte tinha. Os filhos se alegraram no espanto.
- Mãe, onde a senhora tava? - perguntou a mais velha.
- Aqui.
- Não, mãe, aqui a senhora não tava - negou outro, com as concordâncias das cabeças dos demais.
- Estava sim. Estava aqui. Só não estava agora. Quer dizer, um pouco antes.
Não entenderam.
A pequenininha perguntou por que ela ficou parada.
- Não, meu amor, a mamãe não estava parada. Eu que parei o tempo. Todos vocês estavam parados. Eu parei o hoje e alcancei o amanhã. Sou mais ligeira que o tempo. Aguentei socos e chutes demais. Suportei trabalho demais. Meu corpo se cansou e meu tempo se bastou da violência. Saí do próprio tempo e fui buscar o amanhã. E eu me refiz do tempo e trouxe o amanhã comigo. Agora e aqui, estou com vocês.
Acharam que a mãe tinha enlouquecido. Mas, louca ou não, estava bem mais viva. E seguia rápida. Aparentemente, ainda mais.
O marido retornou e a estranhou. Questionou sobre algum macho. Ela riu de deboche e respondeu que não era verme que nem ele. Nunca havia dito nada nesse nível. Nunca havia dito nada. Ele foi pra cima, mas parou ao vê-la com uma faca nas mãos. A faca brilhava propósito de morte. Recuou. Xingou e foi xingado de volta. Saiu e não voltou.
O homem jamais voltou. De início, procuraram-no; depois, apenas o corpo. Nada encontraram. Dona Teia também desapareceu por um tempo. A faca de brilhante propósito sumiu na mesma época. Disseram, na língua maldosa, que ela, feita viúva-negra, matou o marido. Teria lhe comido, enojada, pedaço a pedaço. O corpo nunca foi achado.
Prefiro acreditar que não, que não comeu o homem. Sei, de certeza, que a dona Teia viveu feliz na viuvice e na maternidade. Pobre, preta e respeitada pela vizinhança, especialmente pelas mulheres, que aprenderam com ela a ter palavras. Era a dona do amanhã. Morreu em idade que o tempo não alcança. Ou está por aí, viva, morando dentro de uma aranha. Deve estar tecendo o tempo.