O DIA D DE THÉO DURAND

Um pássaro pequeno me observa do lado de fora da janela, que está semiaberta e com algumas manchas de sujeira. Ele prefere não entrar. Parece me estudar. É pequeno, preto, tem o bico afiado. Seu olhar é curioso, parece se interessar pelo que estou fazendo. Sentado numa poltrona velha, dou polimento à minha câmera fotográfica, uma Canon EOS, que já registrou importantes acontecimentos na cidade. Hoje é quase uma relíquia, uma peça de museu.

Diversos sentimentos ocupam a minha mente. Há uma hora e meia recebi uma ligação estranha. Do outro lado da linha uma voz masculina, grave, enérgica, pergunta se está falando com o fotógrafo Théo Durand. Confirmo que sim. Disse que tinha uma proposta que poderia me interessar. Tentei, sem sucesso, saber quem era meu interlocutor. Ele só disse que se eu quisesse ressuscitar minha carreira, bastaria que eu me dirigisse até uma pequena praça, no meu bairro, e fuçasse a lixeira que está com uma fita azul pendurada. No fundo dela há um envelope amarelo, com as explicações necessárias. Não posso demorar a ir. Corro o risco de não mais encontrar o material. A voz do outro lado perguntou se eu havia entendido a mensagem. Confirmei que sim. Antes que eu pudesse fazer questionamentos, o telefone ficou mudo.

Com a câmera nas mãos, observo que o pássaro continua à espreita. Munido de uma boa lente, faço algumas fotos dele. Parece uma metáfora da minha vida: um profissional que no passado foi premiado, requisitado, condecorado, etc., e que agora faz imagens de aves em janelas no meio da tarde de um dia de semana. Minhas lentes parecem ter desaprendido a mostrar qualquer coisa que seja minimamente interessante às revistas e aos jornais. Meu olhar de fotógrafo amarelou e parece coisa sem função no mundo moderno. Talvez o passarinho seja o mensageiro dessa verdade, que ainda teimo em não reconhecer.

Penso na ligação do estranho. O que eu teria a perder? Reconsidero e decido buscar o envelope. Coloco um casaco e uma boina e me dirijo até a praça. O fato de alguém misterioso saber onde moro, meu número de telefone, nome, função, histórico e se interessar por mim a ponto de brincar de agente secreto de filme me causa uma espécie de pânico. Mas um pânico excitante e que me move.

Como a praça é pequena, não tenho dificuldade para encontrar a lixeira com a tal fita azul pendurada. Estou sozinho, mesmo assim olho para todos os lados e banco o espião, antes de enfiar a mão e encontrar o envelope. Avalio que há algum tipo de charme na tarefa. Se o pássaro que me visitou mais cedo estivesse por aqui talvez não visse nenhum charme na ação. A imagem de um mendigo buscando restos de comida no lixo seria uma visão mais verossímil para quem observa. Talvez até para um pássaro, com pouca ciência da vida dos homens.

Coloco o envelope no bolso do casaco e rumo para casa. Não sem antes olhar tudo ao redor. Talvez meu estranho interlocutor esteja escondido em algum canto da praça, a me observar. Talvez seja um perseguidor e tenha armado uma cilada para mim. Cheguei a considerar a hipótese, mas minha curiosidade pesou mais na balança e aqui estou: um homem velho fugindo para seu apartamento, após fuçar lixeiras na praça, obedecendo a um chamamento muito estranho.

Ansioso, chego em casa e abro o envelope. Pausa dramática para respirar. Dentro há um bilhete, escrito à mão. Transcrevo aqui o conteúdo: “Caro senhor Théo Durand, sou um grande admirador do seu trabalho. Tentei seguir na profissão, inspirado por sua arte. Não tenho o seu talento, infelizmente. Lamento que não esteja mais sendo reconhecido como merece. Prefiro não me identificar, mas acho justo informar que pertenço a um núcleo que tenta tornar o mundo um lugar melhor. Nossos métodos não são os mais polidos e populares, reconheço, mas acredito no bem maior, no valor do sacrifício. Vou direto ao assunto agora: daqui a três dias, no domingo, minha organização vai realizar um protesto num café da Rue des Archives, no Centro de Paris. Para ficar claro, vou traduzir. Protesto é o que a imprensa chama de atentado terrorista. É o café ao lado da banca de revistas. Será pontualmente às 18h. Em frente há um pequeno restaurante. De lá, o senhor pode se posicionar e ser o único a registrar o exato momento da explosão. Não preciso dizer que isso o recolocará na mídia como o grande fotógrafo que sempre foi. Não haverá risco estando no restaurante em frente. Não preciso dizer que é um segredo nosso e que a polícia não precisa ser informada desse plano. Não espero resposta sua, apenas esteja no lugar combinado e mostre ao mundo o seu talento novamente. Obrigado, M.”.

Reli dezenas de vezes o manuscrito. Chequei mentalmente o roteiro citado e ele confere com as lembranças que tenho daquele trecho da cidade. Meu primeiro ímpeto é que poderia se tratar de alguma brincadeira de amigos. Considerei isso por alguns minutos. Mas e se não for uma piada? Começo a suspeitar que estou diante de uma decisão muito complexa.

Quem é M. e que grupo terrorista ele pertence? Por que escolheu a mim para ser testemunha de algo tão horrendo? Quantas pessoas serão mortas na ação? O que eu poderia fazer para impedir? Entro em contato com as autoridades? Espero e vou lá registrar a cena e voltar aos holofotes? Todas essas terríveis perguntas fazem carrossel no meu cérebro. Parecem não trazer respostas, apenas formulam novas perguntas. A única providência que consigo tomar é abrir minha gaveta de remédios e me valer dos milagres da indústria farmacêutica.

Por algum motivo essa situação reavivou minha vaidade. Fui ao computador e revi, com interesse juvenil, alguns dos meus feitos na fotografia. A cobertura da morte da princesa Diana talvez tenha sido minha maior glória. Eu era um dos paparazzi que estavam seguindo-a e seu namorado Dodi Al Fayed. Minha fotografia sobre o acidente correu o mundo, me trouxe fama e dinheiro. Minha última façanha foi a cobertura do atentado na sala de concertos Bataclan, próxima ao Stade de France, onde acontecia o jogo entre França e Alemanha. Desde esse evento, não consegui emplacar nenhum trabalho relevante. Foi meu obituário. Minha despedida dos flashes, em mostrar os horrores da vida real para o mundo de modo quase artístico.

Estou imaginando que tipo de homem serei depois das 18h de domingo. Cúmplice de um crime contra a humanidade? Um grande profissional que estava no lugar certo e testemunha e registra um fato importante? Um delator, que agora terá que viver escondido e fugindo de terroristas? Alguém que ignora tudo isso e resolve seguir sua vida, no pó do esquecimento?

Já é manhã de domingo e sigo fazendo equações mentais. Não consigo ter clareza no que seria uma decisão correta. De todo modo, minha câmera está polida, com lentes e baterias a postos para qualquer evento. Corroído por dúvidas ou não, sempre sou um homem preparado, aparelhado para todas as guerras.

Vou ao citado café e lá faço meu desjejum. Como croissant com café. Do lado de fora, duas moças fumam com elegância. À minha frente um homem que julgo ser professor de química folheia entediado um jornal. Perto de mim está uma mulher de seus quarenta anos, com uma criança. Um menino de talvez 8 anos. Tento ler em cada habitante daquele espaço algum tipo de trajetória. Quantos deles estarão no fim da tarde por ali, no ato final de suas vidas?

Almoço, vejo alguma coisa desinteressante na televisão, deito, leio, olho pela janela. Nenhuma dessas ações me confere algum tipo de propósito. O tédio e a ansiedade se fundem, formando em mim um novo tipo de sensação, que não consigo dar nome. O que M. está fazendo neste momento é a pergunta que consigo formular. Já terá instalado as bombas? Que tipo de artefato terá escolhido? Quanto pagou por toda a operação? Terá feito um mapa e feito todos os cálculos? O que ele tomou no café da manhã hoje?

Passa das 17h e estou vestido com a minha melhor roupa. Pego o metrô e desembarco próximo ao café, onde daqui a pouco haverá uma explosão. Estou com minha câmera, claro. Mas tento encarnar o figurino de turista. Penduro o equipamento no pescoço. Posso ser confundido com um desses tantos visitantes deslumbrados de Paris. Não me agrada a ideia de ser visto como um profissional escalado para registrar uma tragédia, que está a minutos de acontecer.

Sento-me numa mesa do lado de fora do restaurante. Chamo o garçom, peço o menu. Estudo por um tempo minhas opções. Decido por um prato simples: peito de porco caramelizado. E um vinho de marca simples. Parece ser uma refeição decente e barata. Peço e espero, sem tirar os olhos do outro lado da rua, onde está o café. Pessoas entram. Pessoas saem. Há fluxo lá dentro. À distância, todos parecem felizes e entretidos. Por algum motivo a Bíblia me vem à cabeça. Aqueles minutos que antecedem o dilúvio e como a vida segue seu ritmo, ignorando todos os sinais. A ignorância é um tipo de bálsamo. Eu sei a verdade antecipada e sofro fisicamente por isso. Meu estômago sente algum tipo de contração. Minha boca está seca. Meus olhos ardem. Pisco sem parar. Mas estou ali, posicionado, pronto, à espera do espetáculo.

Minutos depois chega o meu pedido. Sem muita fome, começo a comer. Está no ponto. Há uma crocância no peito de porco. Seu sabor é uma mistura de muita coisa. Me remete à infância na fazenda. Uma camada de sabor quase doce torna a porção mais deliciosa do que eu conseguia me lembrar. Estou satisfeito, quase feliz. Não tiro os olhos do outro lado da rua. O mundo, após sentir esse sabor, me parece mais justo agora. O universo, de algum modo, conspira ao redor da minha mesa e me sopra brisas.

O relógio marca 18h. Estou com a câmera em cima da mesa. Olho o movimento do café do outro lado da rua. Nada acontece. As pessoas continuam tomando seus cappuccinos, comendo seus croissants, fumando seus cigarros e lendo seus jornais. Nenhuma bomba explodiu até agora. Estão todos a salvo. Talvez tenha havido algum atraso no cronograma dos organizadores do atentado. Continuo sem piscar, resolvo filmar o café do outro lado, na esperança de capturar o momento exato em que ele irá para os ares. Capto doze minutos de imagem. São frames bem ordinários, nenhum merece sequer edição. O máximo de ação que consegui foi um senhor bem idoso, que atravessa a rua e quase é atropelado. Profere alguns xingamentos ao motorista e desaparece na outra esquina.

Desligo a câmera, mas mantenho o olhar fixo no outro lado da rua. Nem sempre as coisas saem no horário exato do combinado. Imagino que algum fio pode ter sido desconectado e uma equipe está a caminho para corrigir esse imprevisto. Não vejo, no entanto, nada de anormal, ninguém diferente entrando ou saindo do estabelecimento. Minha fé começa a arrefecer, mas continuo imóvel no local, mesmo 50 minutos depois das 18h.

Como não tenho nenhum compromisso na agenda, peço uma sobremesa, um Baba au Rhum. Parece delicioso na foto do menu. Resolvo confiar nos meus olhos. Decido esperar mais um tempo. Não há mais tarde. Toda a paisagem já é noite. As luzes iluminam a cidade e confere a ela o mistério que estampa as propagandas das agências de viagem. Não faz tanto frio. Paris está suave, está coberta de algum tipo de névoa invisível aos olhos, mas não aos sentidos. Duas horas depois da hora marcada, lanço meu último olhar ao outro lado da rua. Um casal sai de mãos dadas do café e caminham confiantes pela calçada. Atravesso a rua e tomo a direção contrária. Viro a esquina e não tenho mais responsabilidade sobre a paisagem.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 25/05/2023
Reeditado em 30/05/2023
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