Yatil

YATIL, por F.D. Millet

Tradução: Gabriel L. Trizoglio

Quando estive em Paris, na primavera de 1878, eu testemunhei um acidente em um circo, que por um tempo me fez evitar espetáculos semelhantes. Seis cavalos estavam posicionados lado a lado no picadeiro junto a um trampolim e uma turma de atletas corria e saltava-os, pousando numa cama elástica. A agilidade de um deles, bem jovem, arrancava aplausos cada vez que pulava. Ele se atirava no ar como uma lança e, em seu vôo, girava e caía de pé, pousando tão levemente quanto um pássaro. Esse número continuou por alguns minutos e a cada vez que aplaudiam, o favorito parecia executar seu movimento com mais habilidade e graça. Finalmente, ele se posicionou um pouco mais longe para mais um salto, evidentemente para ter um início ainda melhor. Pulou e se lançou no ar com um tremendo impulso. Mais rápido do que os olhos podiam acompanhar, ele se virou e já chegava ao chão, com os braços levantados ligeiramente para frente, juntando as pernas para pousar.

Mas desta vez, o atleta estava adiantado. Os pés tocaram a ponta da cama elástica e ele foi jogado violentamente para a frente, caindo no chão. O forte impacto pôde ser ouvido por toda a imensa plateia. Ele permaneceu um segundo ou dois sem se mover, levantou-se e rapidamente caiu outra vez. Os assistentes e dois ou três ginastas correram até ele e o levantaram. O palhaço, em traje de gala que satirizava o dono do circo, um outro, vestido de folião e um ginasta forte em traje amarelo carregaram o acidentado nos braços. Eram seguidos por pessoas que ofereciam uma assistência sem efeito. Atravessaram o picadeiro levando o homem ferido e entraram pelo arco drapeado, adentrando a galeria musical. Em qualquer outra circunstância, o grupo provocaria alguma risada da plateia, já que esta se encontrava em condição quase histérica de excitamento. Era suficiente uma brincadeira apenas, feita por um palhaço, para causar uma onda de gargalhadas. Mas no momento em que o homem ferido foi levantado do chão, aquela luz de alegria, como a de um candelabro, se apagou. Um murmúrio profundo de empatia surgiu e se espalhou entre as pessoas no recinto.

Saí do circo e centenas de pessoas fizeram o mesmo. Diversas pessoas, eu inclusive, ligaram para o setor administrativo para perguntar sobre a vítima do acidente. Ele era divulgado como “o grande ginasta aéreo polonês”. Descobrimos que ele era realmente do leste europeu, mas o vendedor de bilhetes não sabia se era polonês ou russo. Seu nome verdadeiro era Nagy, ele tinha sido recém-contratado e retornava de uma turnê na América do Norte. Suspeitava-se de que tivesse muito dinheiro, já que recebia um bom salário. Era sóbrio e seguro. O acidente, disseram, o afastaria por algumas semanas e então ele retornaria ao trabalho.

No dia seguinte havia notícias do acidente nos jornais e, vinte quatro horas depois, a cidade esqueceria do assunto. Por alguma razão eu pensava com frequência no atleta acidentado e tinha um impulso para ir perguntar por ele, o que acabava não fazendo. Parecia que eu tinha visto o rosto dele antes. Tentava, mas não conseguia, recordar quando ou onde o vi. Não era um rosto tão diferente, mas eu conseguia lembrar dele em qualquer momento que quisesse, como se tal rosto fosse distinto para meus olhos, como se estivesse gravado numa fotografia. Cada vez que eu pensava nele, uma memória bastante desgastada voava dentro da minha cabeça e eu nunca conseguia melhorá-la.

Dois meses depois eu caminhava na rua Richelieu quando alguém perto de mim, um pouco atrás, me perguntou em húngaro se eu era um Magyar (1). Eu me virei rápido para responder que não, ainda surpreendido com tal pergunta, e vi o atleta circense acidentado. Assim que vi seu rosto, lembrei imediatamente que eu já o tinha visto em Turim três anos antes. A súbita identificação do ginasta fez com que ele ficasse envergonhado por falar com um estranho. Ele começava a se desculpar e já se distanciava quando eu perguntei sobre o acidente, acrescentando que eu estava presente na noite do ocorrido. Minha pergunta seguinte, feita para continuar a conversa, foi:

- Por que perguntou se eu era húngaro?

- Porque você está usando um chapéu húngaro – respondeu.

Era verdade. Eu tinha um chapéu pequeno e macio, adquirido em Budapeste.

- Bom, mas e se eu fosse húngaro?

- Nada. É que eu estava sozinho e queria companhia, e parece que eu já tinha te visto antes. Você é artista, não é? - Eu disse que era e perguntei como ele adivinhou. - Não consigo explicar, mas eu sempre identifico artistas. Está fazendo alguma coisa?

- Não. - Respondi.

- Talvez eu possa arranjar algo para você fazer - sugeriu. Qual sua área?

- Imagens - respondi, sem conseguir imaginar como ele poderia ajudar. A resposta parece tê-lo deixado um pouco confuso e ele continuou.

- Você salta ou faz trapézio?

Era minha vez de ficar confuso, o que poderia facilmente ser notado pela minha expressão. Eu estava sendo confundido com artista de circo. Todavia, como ele não percebeu qualquer mudança em meu rosto, eu esclareci de forma direta que era um pintor. A explanação parece não tê-lo incomodado em nada. Ele evidentemente conhecia o trabalho de um pintor e parecia tão interessado tanto quanto no próprio trabalho dele.

Enquanto caminhávamos pelo jardim Des Tuileries, eu tive a oportunidade de examinar a aparência geral dele. Se vestia corretamente e, embora pálido, parecia apresentar boa saúde. Apesar de mancar, era ereto e seus movimentos denotavam grande esforço físico. Na ponte sobre o rio Sena, paramos por um momento e nos curvamos no parapeito. Pela primeira vez ficamos perto um do outro, face a face. Ele me olhou com mais atenção por um momento, sem falar e então gritou “Turim” tão alto, como se quisesse chamar a atenção dos demais passantes. Pegou-me na mão para um cumprimento e movimentava-as dizendo repetidamente “Turim”.

Esta palavra limpou minha memória enevoada como mágica. Não havia mais mistério algum sobre o homem diante de mim. O impulso que fez com que nos aproximássemos era apenas um souvenir inconsciente de um evento anterior, um dia no passado em que havíamos nos encontrado. A visão da cidade italiana, que surgiu distinta em meus olhos naquele momento, trouxe também cada detalhe do incidente que já passava longe de meus pensamentos.

Foi durante o carnaval de 1875 em Turim que fiquei na cidade um dia e uma noite em uma viagem de Paris a Veneza. O festival estava melancólico, o que não era normal, com o ar frio e o céu cinza e tristonho. Havia uma total falta de espontaneidade no espírito popular. A decoração brilhante da praça e das ruas, os inúmeros shows e barracas, as fantasias extravagantes, nada disso conferia qualquer alegria nem vida aos presentes, dado o enorme desânimo no coração deles. O poder do rei do Carnaval estava comprometido e nem a influência da igreja ou o encorajamento do estado eram capazes de evitar tamanha chateação do monarca. Não havia comunicação alguma e todos os esforços, mesmo os menores, não proporcionavam qualquer diversão. O dia, portanto, seguia longo e tedioso. Eu circulava entre as pessoas também melancólico e no fim do desfile eu vi os cartazes coloridos que anunciavam um circo. Sabia que meu dia estava salvo, já que eu adorava este tipo de espetáculo. Uma hora mais tarde eu já me encontrava sentado numa das poltronas do enfeitadíssimo anfiteatro quando acontecia a já familiar apresentação de cavalos treinados, tais como outras parecidas que eu já tinha visto centenas de vezes. E finalmente os “celebrados irmãos Cypriot, cavaleiros universais” chegaram elegantemente na arena, espalhando-se levemente, montados em dois cavalos pretos. Moviam-se no pequeno círculo como vento, ora juntos, ora separados, exibindo-se numa cavalgada realizada com força e habilidade. Não era difícil notar que não havia qualquer relação entre os dois cavaleiros. Um deles era pesado, grosso, de pele escura, com o jeito despojado de quem cresceu em um circo. O outro era pequeno, bem penteado, aparentava dezenove ou vinte anos com a cintura reta e alinhada como a de Narciso e tinha as juntas pontudas, como a dos faunos. Sua cabeça era redonda e a face do tipo que nunca poderia ser considerada bela, mas de expressão forte e atraente. Os olhos eram pequenos e piscavam muito. As sobrancelhas pesadas e a boca de formato peculiar pareciam nunca estar incomodadas pelo sorriso intimidador do colega mais experiente. Era evidentemente um estrangeiro. Ele executava as performances com firmeza surpreendente e leve esforço. Aparentemente apreciava bastante os aplausos calorosos, mas não tinha qualquer traço dos gestos blasé do colega mais velho. Em quase todos os números apresentados ele tinha uma parte de destaque. No trapézio, ultrapassou os cavalos postos lado a lado, juntando-se ao irmão e um outro rapaz miúdo, finalizando o show. Em seguida, ia até a plateia para vender fotografias enquanto era realizado um jogo de loteria. Como de costume, durante a festa um jogo de loteria era organizado pelo gerente do circo. Os bilhetes tinham números marcados para que os participantes concorressem a prêmios. Quando o jovem ginasta veio até mim, usando seu traje azul e salmão, calçando chinelos e trazendo a cesta com fotos, perguntei se ele era italiano.

“No, signor, Magyar!”, respondeu e eu logo descobri que seu conhecimento de italiano se resumia a uma dúzia de palavras. Eu escolhi algumas fotos e para a surpresa dele, falei em sua língua nativa. Quando ele soube que estive na Hungria ficou muito contente e a impaciência dos outros clientes em comprar fotos foi o único motivo que nos impediu de conversarmos mais. Quando ele se afastava, dei a ele meu bilhete de loteria, avisando que eu nunca tive sorte, mas esperava que ele tivesse.

Os números eram anunciados rapidamente e os prêmios organizados por ordem de valor. Os bilhetes eram sorteados em um chapéu e os prêmios distribuídos aos ganhadores. “Número vinte e oito, ganhou um elegante par de vasos! Número dezesseis, três garrafas de vermute! Número cento e oitenta e quatro, castiçais e duas garrafas de vermute! Número quatrocentos e dez, três garrafas de vermute e um conjunto de joias! Número trezentos e dezenove: cinco garrafas de vermute!”, e assim continuou o sorteio, com mais garrafas de vermute sendo distribuídas que qualquer outra coisa. Quase todos os sorteados levavam alguns litros da bebida especial de Turim e eu comecei a pensar que talvez teria sido melhor não ter dado o bilhete ao meu amigo do circo, já que ele poderia faturar umas bebidas.

Vários prêmios já haviam sido sorteados, faltando somente dois últimos. A euforia naquele momento foi intensa e aumentou mais quando o apresentador disse que eles levariam os grandes prêmios da noite: um conjunto de roupas produzidas por um alfaiate local e um vale que dava direito a um relógio de ouro com corrente. O primeiro destes números remanescentes foi retirado do chapéu.

“Número vinte e cinco - ganhou um conjunto de roupas!”, foi o anúncio.

Era o meu número. Eu não escutei o último número sorteado, já que o húngaro estava na minha frente tentando me devolver o bilhete, protestando e dizendo que ele tinha se apropriado de minha sorte. Eu, por minha vez, o convenci a aceitar o prêmio e fui pra casa. Na manhã seguinte, fui embora da cidade.

Na ocasião em que nos reconhecemos em Paris, o artista circense começou a relatar, depois do nosso primeiro momento de surpresa, a história de sua vida desde o acidente. Ele passou por Nova York e Boston e todas as cidades litorâneas maiores. Passou por Chicago, St Louis e até São Francisco, sempre viajando com o circo. Sempre que estava nos Estados Unidos, pedia notícias sobre mim.

“Este país é tão grande”, ele disse, suspirando. “Cada pessoa que eu perguntava sobre você e mostrava o bilhete com seu nome escrito me respondia isso”.

A razão pela qual ele manteve o bilhete e tentava me encontrar era porque aquele documento foi a razão direta de sua emigração. Era, de fato, o primeiro pedaço de boa sorte que havia caído sobre ele desde que deixou seu país. Quando se juntou ao circo, ele era um aprendiz. Por isso, além das horas diárias de treinamento em ginástica e o trabalho com as vendas de tarde e à noite, ele era responsável por tratar de seis cavalos, armar e desarmar barracas e ainda fazia parte da equipe que dirigia os carros. Por todas estas dezesseis ou dezoito horas diárias de trabalho ele recebia apenas alimentação e o traje com o qual se apresentava nos espetáculos. Quando ele foi promovido para a equipe principal de artistas, as atividades ficaram mais leves, mas o pagamento ainda não era suficiente para suprir todas as necessidades. Sem um centavo e sem outras roupas além da roupa de trabalho e o traje de apresentações, ele ficava bastante limitado e não tinha esperanças de ir muito além disso. Aquele bilhete premiado mudou tudo.

“Todos os húngaros idolatram os Estados Unidos”, explicou, “e quando descobri que você era norte-americano, eu sabia que minha sorte mudaria. Claro que eu acreditava que esta é a terra da bondade e não há prova maior disso que este ato de generosidade, em que você, a primeira pessoa que que eu vi deste lugar, deu a mim, um estranho, um prêmio de tal valor. Depois que tudo isso aconteceu, resolvi tentar a sorte neste país. Vendi as roupas que ganhei e tive dinheiro o bastante para comprar umas outras peças e também uma passagem para Gênova. De lá, viajei para Gibraltar e me apresentei por algumas semanas em um pequeno circo inglês. Acabei indo para Nova York em um barco que transportava frutas. Uma vez lá, prosperei. Ganhei bastante dinheiro, mas gastei muito também. Depois de alguns anos, voltei para Londres com um grupo de artistas, mas quebrei por conta da má administração do gestor. Na Inglaterra, passei muita dificuldade. Há muitos artistas de circo lá. Mal conseguia oportunidades, então fui para Paris”.

Nosso passeio durou uma hora e, apesar de eu não esboçar qualquer interesse em saber mais sobre ele, havia uma certa atração em sua simplicidade e na fé ingênua a respeito de minha influência em sua sorte. Antes de irmos embora, ele falou novamente sobre sua habilidade em conseguir algo para eu fazer, mas eu não dei tanta importância àquilo para que ficasse claro que eu não precisava de trabalho. Depois dele pedir várias vezes, forneci meu endereço, conciliando o quanto podia minha relutância em marcar um novo encontro, que poderia resultar em nada mais que amolação.

Um dia passou, passaram dois e no terceiro, de manhã, o porteiro trouxe ele à minha porta. “Encontrei trabalho pra você!”, gritou, na primeira oportunidade. Um conhecido dele polonês conhecia um homem do interior que trabalhava como copista no Louvre. Este copista tinha pedidos em abundância e ficaria feliz se conseguisse alguém para ajudar a finalizar o trabalho em tempo mais rápido. Meu amigo ginasta estava tão eufórico por seu sucesso de encontrar uma ocupação para mim que eu não tinha coragem para dizer a ele que eu estava de folga somente enquanto procurava um estúdio. Por isso, prometi ir com ele ao Louvre qualquer dia, mas eu sempre encontrava alguma desculpa para não ir.

Por duas ou três semanas, nos encontrávamos em intervalos espaçados. Várias vezes pensei que ele passdava por necessidade, então eu tentava emprestar algum dinheiro. Ele, contudo, sempre recusava com veemência. Fomos juntos à pensão que ele morava. A proprietária era uma inglesa que hospedava diversos artistas de circo. Ela tratava meu amigo como “o pobre e amável sr. Nodge” de maneira maternal e explicou que ele não estava trabalhando em nada, já que o acidente o debilitou. Num espaço de poucos dias eu soube a história completa da vida dele, com aventuras e muito tabalho no circo. Ele era, como eu pensava na época, um iniciante no trabalho quando eu o vi em Turim. Tinha deixado sua terra menos de dois anos antes. Ele se tornou um membro da companhia com apresentações regulares somente por alguns meses, depois de passar um tempo difícil e aprendizagem desgastante. Ele nasceu em Koloszvar, onde o pai era professor universitário e cresceu com três irmãos e uma irmã em uma casa confortável. Nasceu nele uma paixão pela vida de viajante e desde bem pequeno já demonstrava grande interesse por ginástica e acrobacia. A ideia de trabalhar em um circo o fazia ficar louco. Em raras ocasiões os circos visitavam sua terra e, quando acontecia, seus pais, com dificuldade, evitavam que ele partisse com a trupe. Mas em 1873, um circo ainda maior e com mais atrações e mais brilhante do que qualquer outro chegou por meio da recém-inaugurada linha de trem e ele, já um homem, finalmente foi embora. Já não era mais capaz de resistir à paixão por esta profissão. Sempre acostumado a cavalos e já um acrobata habilidoso, foi imediatamente aceito pelo proprietário como um aprendiz e, depois de uma temporada na Romênia e uma viagem desastrosa pelo sul da Áustria, eles foram para o norte da Itália, onde o conheci. Sempre depois de falar deste período da vida, ele ficava quieto e triste. Por bastante tempo, acreditei que ele pensava sobre seu engano em trocar uma casa feliz pela vida incerta de artista de circo. Mas um tempo depois ficou claro que ele era assombrado por uma superstição estranha e ingênua, uma que não tinha qualquer motivo aparente para sua existência.

Pouco a pouco, fui aprendendo fatos relacionados: seu pai era um Szeklar (2) puro ou Húngaro original, de pele escura como um hindu, e sua mãe era de uma família do oeste da Hungria, provavelmente com algum sangue saxônico (3) em suas veias. Seus três irmãos eram escuros como o pai, mas ele e a irmã eram loiros. Ele nasceu com uma mancha vermelha peculiar no ombro direito, bem acima da clavícula, na forma de um Y.

O pai dele foi ferido na revolta de 48, alguns meses antes dele, o filho mais novo, nascer. A marca de nascença era uma reprodução da cicatriz do pai. Entre os Húngaros, o pai dele era considerado um homem bastante instruído: falava fluentemente alemão, francês e latim. Esta última era a língua utilizada pelos húngaros com pessoas de outras nacionalidades. Ele se sacrificou para ensinar aos filhos cada uma destas línguas.

Um dos primeiros brinquedos deles era um par de blocos com o alfabeto francês. Este instrumento servia para brincadeiras e atividades para cada um dos irmãos e ele foi o último a utilizá-lo. As letras eram acompanhadas de uma figura humana em diferentes atitudes e cada bloco tinha uma pequena rima abaixo da figura, começando com a letra do bloco. O Y representava um ginasta pendurado pelas mãos a um trapézio. Sendo esta uma letra pouco presente no idioma húngaro, exceto em combinações, ela atiçava a imaginação e o interesse das crianças. Eles praticavam inúmeras vezes a junção de figuras dos blocos e o Y sempre servia como um modelo para exercícios de trapézio. Meu amigo, por conta de sua marca de nascença, que lembrava um Y, foi apelidado pelos irmãos de Yatil, que eram as primeiras letras da rima francesa impressa embaixo da figura. É fácil compreender como a forma desta letra, marcada em seu corpo de forma permanente e que vive em seu pensamento o tempo todo, era de alguma maneira ligada à sua vida. Esta crença foi aumentando e ele ficou cada vez mais supersticioso com a letra Y e qualquer coisa a ela ligada, mesmo as mais remotas.

O primeiro grande acontecimento de sua vida foi juntar-se ao circo, o que teve alguma relação com a letra mágica: aconteceu quando ele tinha vinte e cinco anos. Vinte e cinco era o número que marcava a letra no bloco alfabético.

O segundo grande evento de sua vida foi a premiação no sorteio em Turim. O número do bilhete era vinte e cinco. “O sinal mais recente”, explicou, “foi o acidente no circo”. Após falar, ele enrolou a barra direita da calça e, no meio da panturilha, havia uma cicatriz vermelha no formato de um Y.

Na época que me confidenciou isto, ele me visitava cada vez mais frequentemente. Eu devo confessar que me sentia um pouco constrangido e perdendo a naturalidade. Meu amigo parecia ver em mim um protetor, esperando o tempo todo por uma intimidade e empatia que eu não podia transmitir a ele. Apesar de saber de seu segredo, eu não podia fazer nada para aliviá-lo daquela cisma. Nagy se recuperou totalmente do ferimento, mas como sua perna ainda estava fraca e ele ainda mancava um pouco, não conseguia voltar a trabalhar no circo. Por refletir sobre a superstição e se preocupar com o acidente, ele ficou bastante desanimado. O clímax de sua desesperança aconteceu quando o médico disse que ele nunca poderia voltar a fazer malabarismos. A fratura foi grave, do tipo exposta. As partes quebradas colaram com bastante dificuldade e a perna não ficaria mais firme nem elástica como antes. Além disso, a fratura encurtou a perna. Sua carreira no circo foi encerrada muito cedo e ele atribuía este infortúnio a uma maldição ligada à letra Y.

Enquanto isso tudo acontecia, foi declarada guerra entre Turquia e Rússia. Os embaixadores turcos estavam recrutando interessados em toda a Europa Ocidental. Chegou até a pensão onde moravam os artistas a notícia de que precisavam de bons cavalgadores para a tropa. Meu amigo resolveu se alistar e fomos juntos até a embaixada turca. Ele foi submetido a um exame superficial e orientado a se apresentar no dia seguinte para embarcar para Constantinopla (4). Ele implorou para que eu fosse junto e lá nos despedimos com um adeus. Eu ainda apertava a mão dele quando me mostrou o certificado que recebeu do embaixador. Estava impressa a data de 25 de maio e a assinatura na parte inferior, em caracteres russos, faziam a imaginação enxergar um Y escrito de forma irregular.

Uma série de eventos ocorreu imediatamente depois de Nagy partir para Constantinopla e resultou na minha própria partida em um grupo de voluntários civis para as linhas russas. A sequência daquelas curiosas coincidências na vida do meu amigo circense me impressionaram muito na época, mas posteriormente, durante as campanhas de guerra, eu esqueci de tudo. Não lembro de ter pensado em Nagy nos cinco meses que trabalhei como voluntário. No dia da queda de Plevna, eu cavalguei pelas terras abandonadas até a cidade. Os mortos jaziam onde haviam caído em uma cena dramática, inúteis desde o dia anterior. Os mortos de um campo de batalha sempre despertam interesse, independente deste ser um espetáculo diário ou não. Eu cavalgava calmamente e examinava a posição em que eles estavam, tentando estabelecer uma relação entre as poses de morte e o último movimento deles no último momento de vida. Atrás de uma barricada rude de carroças que levavam objetos pessoais, junto de um grupo de não combatentes que Osman Pasha ordenou acompanhar o exército, havia um grande número de mortos espalhados confusamente. A posição peculiar de cada um destes instantaneamente atraiu meus olhos. Um deles caiu com o rosto contra a barricada, com ambos os braços sobre a cabeça, evidentemente morrendo instantaneamente. A figura do bloco alfabeto descrita por meu amigo artista veio à minha mente imediatamente. Meu coração disparou assim que desci do cavalo e olhei para a cara do morto. Era um turco genuíno.

Este incidente fez reviver meu interesse na vida de Nagy e tive um impulso de olhar entre os prisioneiros, para ver se por acaso ele estaria lá. Fiquei alguns dias distribuindo cigarro e pão nos hospitais e aos trinta mil combatentes infelizes que estavam desabrigados na neve. Havia cavaleiros entre eles e eu encontrei vários Húngaros, mas ninguém tinha escutado falar de meu amigo.

A passagem dos Balcãs foi uma campanha turbulenta e acompanhada de tantas dificuldades que o egoísmo acabou tomando conta de mim e a vida se tornou uma batalha por conforto físico. Depois de passar as montanhas, nós seguimos tão rápido que tive poucas oportunidades de examinar os poucos prisioneiros, procurando pelo artista.

O tempo passou e depois de três dias de luta estávamos perto de Philippopolis em meados de janeiro. O exército de Pasha foi derrotado, desorganizado e saiu em debandada, ainda que não tivessem sido rendidos. A finalização se deu com um ato trágico na última campanha, com a resistência heróica realizada nas colinas próximas às montanhas Rhodope, perto de Stanimaka, ao sul de Philippopolis. Um longo mês sob frio terrível, no alto das montanhas dos Balcãs. O recuo forçado pela neve depois da batalha de Taskosen; a corrida lado a lado com os russos vale abaixo (Maritza) e, finalmente, a pequena mas árdua batalha perto do rio e dois dias de embate mão contra mão na vinha de Stanimaka. Esta era uma campanha para devastar qualquer soldado. Dias sem comida, noites sem abrigo, explosões na montanha, soldados sempre marchando e lutando, bagagem e suprimentos perdidos, munição e artilharia esgotadas. O corpo não podia suportar mais e o exército turco se dissolveu entre as montanhas. Infelizmente, para aquele país, a Turquia não registrou em texto o ocorrido e não produziu qualquer obra de arte para perpetuar o heroísmo de seus defensores.

Os incidentes daquela campanha curta são cheias de horror e, por isso, impossíveis de serem narradas. O demônio da guerra não devora somente homens fortes. Faz de mulheres e crianças inocentes presas para sua boca sangrenta. Famílias inteiras, enlouquecidas por acreditar que a captura era pior que a morte, lutavam nas trincheiras com os soldados. Mulheres camufladas atiravam nos russos enquanto rumavam até os trens capturados em busca do tão necessário alimento. Crianças pequenas eram jogadas na neve pelos pais fugitivos e morriam de frio e fome, ou morriam atropeladas pelos cavalos. Tamanho desperdício de vidas humanas não era visto desde os inúmeros massacres da Idade Média.

Ver o sofrimento humano logo cega a sensibilidade de uma pessoa a ponto de ela, no fim, olhar para este sofrimento e se sentir inútil apenas, nada mais que isso. Condenada ao inevitável, já não se impressiona com as dores dos indivíduos. Observa doenças, ferimentos e a morte de soldados como sendo algo normal, considerando cada um destes combatentes uma parte insignificante da grande massa de homens. Por fim, somente situações inéditas de horror são capazes de excitar os sentimentos.

Eu voltava cavalgando do campo de batalha convencido de que a guerra terminaria rapidamente após saber que o exército de Suleiman foi dissolvido. Esqueci onde estava e me imaginei de volta ao meu apartamento confortável em Paris. Despertei de meu sonho na estação, onde a estrada para Stanimaka cruza a ferrovia, cerca de 3 quilômetros ao sul de Philippopolis. O imóvel de madeira onde funcionava o quartel foi usado como hospital para atender os turcos feridos. Desci do cavalo para observar o último grupo de quatrocentos soldados, que sofriam de fome há quase uma semana, embarcando em vagões para serem transportados até a cidade. A estrada para Philippopolis estava repleta de feridos e refugiados. Famílias inteiras de camponesees lutavam para sobreviver, acompanhados de seus pertences dentro dos carrinhos. Carregamentos de munição e bovinos perdidos passavam com rapidez entre as pessoas, tornando ainda mais desesperançosa toda aquela confusão. A noite chegava com rapidez e, em companhia de um cossaco que, assim como eu, se dirigia ao quartel do general Gourko, caminhei no meio de toda aquela gente, animais e carrinhos rumo à cidade. Era um daqueles típicos dias frios e úmidos de inverno quando o único conforto possível vem de uma fogueira e conseguir abrigo para passar a noite se revelava uma necessidade absoluta. A garoa molhou minha roupa e a neve e lama ensoparam minhas botas. Rajadas de um vento doloroso guiavam o frio e, à medida que a temperatura caía no fim da tarde, a neve semiderretida das estradas começava a endurecer e a neblina gelava os lugares por onde passava. Cada movimento dos passos dados parecia expor ao clima alguma parte desprotegida do corpo. Nenhum exercício feito com as roupas molhadas naquele frio era capaz de aquecer. Guiando meu cavalo, eu prosseguia, mantendo meus braços longe do corpo e apenas movendo de vez em quando meus dedos dormentes para enxugar as gotas geladas em meu rosto. Era uma temperatura de fazer desaparecer a coragem do homem mais forte e a visão que eu tinha no caminho dos feridos que tremiam ensopados, deitados ou mancando na lama me provocava, contraído como eu estava, uma pontada dolorida no coração. O melhor que eu podia fazer era fazer montar em meu cavalo cansado um jovem e bravo cidadão. Ele tinha uma das pernas envolta em bandagens e caminhava com dificuldade. Seguido pelo cossaco, cujo cavalo carregava peso semelhante, eu me apressava, esperando conseguir abrigo antes de ficar escuro.

Na entrada da cidade havia numerosas fogueiras feitas pelos refugiados, que ficavam todos juntos sob o abrigo de suas carroças, tentando se aquecer. Eu podia ver os feridos, todos deitados nas carroças maiores, olhando fixamente para os caldeirões onde espigas de milho eram cozinhadas. Aquela seria a refeição noturna dos nativos desabrigados. Na cidade os feridos e refugiados se encontravam em situação ainda mais drástica dos que vimos na estrada. Carroças lotadas bloqueavam as ruas. Todas as casas estavam ocupadas e as calçadas estreitas estavam cheias de soldados russos, que também sofriam em seus casacos molhados, calçando botas furadas e rachadas. Na esquina, grupos de gregos, búlgaros e russos observavam apáticos a fila de feridos que andavam mancando virar a esquina para encontrar espaço nas carroças que os levariam ao hospital mais próximo. No caminho, o cossaco que me acompanhava ficou para trás no meio da confusão. Não o esperei, segui cavalgando com dificuldade na sarjeta, conduzindo meu cavalo com a rédea. Instantes depois, vi um grupo de nativos observando com curiosidade dois guardas russos e um prisioneiro turco. Este estava visivelmente exausto, agachado na lama congelada da rua. Os soldados o chacoalharam com rudeza e o fizeram se levantar à força. Moviam-se lentamente, carregando-o entre eles. O turco balançava de um lado pro outro com suas pernas endurecidas.

Era duro olhar para aquele infeliz. Ele não usava fez e não tinha botas. Os pés estavam descalços e a calça esfarrapada era dobrada nos joelhos. Ele tinha lama nas pernas e trazia na cintura uma faixa vermelha, também suja de lama. Usava jaqueta azul maior que para seu tamanho e as mãos e punhos tremiam nas mangas surradas. Sua cabeça virava pra um lado e pro outro a cada movimento do corpo e, em intervalos curtos, os músculos do pescoço eram contraídos rigidamente. Subitamente, ele teve um tremor e foi para a lama novamente.

Os próprios guardas estavam no limite de suas forças e a paciência deles estava acabando. A dura marcha pela montanha fez gastar-lhes as solas das botas, o que resolveram com grandes pedaços de trapo nos pés. Os casacos finos e desgastados, queimados em várias partes, esvoaçavam abandonados sobre o corpo. Os chapéus, tortos por enfrentar várias tempestades, permaneciam encharcados nas cabeças. Eles não estavam em condições de ajudar ninguém a andar, já que eles próprios mal conseguiam. Pararam por um momento. Tremiam, olharam um para o outro, balançaram a cabeça, como desencorajados. Tentaram despertar o turco novamente, carregando-o pelos pés. Os três se moveram por alguns metros, o prisioneiro caiu de novo e a operação foi repetida. Enquanto tudo isso acontecia, eu ia me aproximando. Quando eu estava há cerca de doze passos, o turco caiu mais uma vez. Os russos tentaram despertá-lo novamente, chacoalhando-o, mas foi em vão. Finalmente, um deles perdeu a paciência e feriu o turco com sua baioneta na parte baixa das costelas expostas quando ele caiu e a jaqueta se levantou. Eu agora estava perto o bastante para agir e subitamente afastei os guardas, permanecendo próximo do soldado ferido. Este se levantou lentamente, com certeza por conta da dor do golpe. Sua expressão era de quem implorava e mudou em seguida para outra, entre prazer e surpresa. Imediatamente, uma palidez mortal tomou conta de seu rosto e ele caiu novamente, urrando.

No minuto seguinte, diversos búlgaros estavam em volta e pareciam se divertir ao ver um inimigo sofrendo. Era evidente que nenhum deles iria prestar qualquer assistência, então eu ajudei o russo ferido a descer de meu cavalo e pedi para os nativos me auxiliarem a colocar o turco no lugar. Com autêntico espírito búlgaro, eles se recusaram a ajudar um turco e eu tive que conversar mais para tocar a consciência deles. Três do grupo aceitaram e carregaram o homem inconsciente para perto do cavalo. Os soldados, acreditando que eu fosse um policial, ficaram em estado de atenção. Quando os búlgaros suspendiam o turco para montá-lo, algumas gotas de sangue pingaram no solo. Foi nesta hora que notei que ele tinha sua camisa amarrada em volta do ombro esquerdo, por baixo da jaqueta. Sustentado na sela por dois nativos, um de cada lado, e com a cabeça caída para a frente, próxima ao peito, o soldado turco foi, desta forma, transportado com o maior cuidado possível para o hospital Stafford, perto de Konak. Subíamos lentamente a colina e quando olhei para trás, vi os dois guardas sentados na calçada cheia de lama com suas armas recostadas aos ombros. Estavam muito exaustos para continuar. Encontrei lugar para ele em um dos andares superiores do hospital, onde tomou banho e foi colocado numa cama. Seu estado era delicado. Um projétil atravessou a parte mais grossa do peitoral esquerdo e o braço teria de ser operado para remover parte de um dos ossos.

Na manhã seguinte eu fui ao hospital para ter notícias do ferido, já que o incidente do dia anterior havia me abalado bastante. Caminhando pelo corredor, vi um grupo próximo de uma cama temporária em um canto. Era a evidência de que o soldado turco seria operado. Um assistente elevava em intervalos um reservatório de medicamento acima de uma face abatida sobre o travesseiro e um cheiro forte de clorofórmio preenchia o ar. Quando me aproximei, o cirurgião me reconheceu e com um toque em meu ombro e um sorriso, disse: “estamos cuidando do seu amigo”. Ele falava enquanto desenfaixava o ombro do paciente e eu pude ver os buracos de bala no peito. Sem esperar mais, o cirurgião fez um corte reto de fora a fora, expondo os ossos. Ele tentou serrar os tendões para retirar o osso atingido, mas não conseguiu. Sem perder tempo, fez uma segunda incisão diagonal entre o buraco da bala até o meio do primeiro corte, formando uma aba na pele, levantou-a e a virou sobre o ombro. Desta forma seria mais fácil separar os ossos, serrar e retirar o osso danificado, unir as artérias cortadas e voltar a aba de pele novamente ao lugar.

Não havia tempo a perder, já que o cirurgião se preocupava com os efeitos do clorofórmio no corpo do paciente. Tentamos rapidamente despertá-lo por cada meio possível: jogando água fria nele, esquentando as mãos e os pés. Apesar de estar sob a influência do anestésico ao ponto de ter ficado insensível a qualquer dor, ele não perdeu completamente a consciência e parecia ciente do que estávamos fazendo. Por fim, acordou lentamente, bem lentamente, quando o médico dava pontos na incisão. Ele abriu os olhos e movimentou os lábios. Com um movimento mais aberto, começou a observar as faces de todos ao redor da cama. Algo em seus olhos me despertava uma atração irresistível e eu me aproximei para aguardar que olhasse para mim. Quando os olhos dele encontraram os meus, eles mudaram, como se de repente uma luz tivesse os atingido e o olhar zonzo deu lugar para um outro, de inteligência e reconhecimento. Então, com minha barba já bastante crescida e atrás da máscara de sofrimento em meu rosto, eu vi o artista de circo de Turim e Paris! Me lembro vagamente de qualquer excitação ou surpresa ao vê-lo, já que um sentimento enorme de irresponsabilidade tomou conta de mim. Involuntariamente, eu aceitei a coincidência como um mero acaso. Ele tentou, em vão, falar mas levantou a mão direita e, com dificuldade, fez com os dedos o sinal da letra que esteve sempre presente na história de sua vida. Mesmo num instante como aquele, a luz principiava deixar seus olhos. Algo a arrastou deles como um véu. Com a energia do instinto que toma conta de qualquer pessoa quando existe chance de salvar uma vida, redobramos nossos esforços para reanimar o paciente. Mas enquanto lutávamos para alimentar a chama com um pouco de nossa própria vitalidade, ela enfraqueceu e se apagou, deixando somente as cinzas onde um dia existiu vida. O coração dele parou.

Quando me afastei, meu olho captou o corte feito pelo cirurgião, agora plenamente visível no ombro esquerdo. Tinha a forma da letra Y.

Century Magazine, março de 1883.

Notas do tradutor:

1) Etnia nativa da Hungria.

2) subgrupo Húngaro que vive em território específico na Romênia.

3) Referência aos Saxons, grupo germânico antigo, oriundo ao litoral norte da atual Alemanha.

4) Atual Istambul, na Turquia.