A vida como ela é

Domingo pela manhã. Ele observa pela janela de seu apartamento uma chuva torrencial caindo lá fora, enquanto bebe uma xícara de café. Tem a impressão de que o mundo está desmoronando. Mas não é impressão. Seu mundo está de fato desmoronando!

Longe dali, uma mulher se lamenta pelo ocorrido. O que seria de sua vida agora?

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Casara-se ainda muito jovem porque engravidara do namorado. Como ambos não tinham onde cair mortos, ficaram morando com a mãe dela. Não era uma convivência fácil. Sogra e genro implicavam um com o outro o tempo inteiro. Mesmo amando o marido e compreendendo algumas de suas atitudes, reconhecia que, na maior parte das vezes, a mãe tinha razão. Ela justificava os defeitos do marido, usando como argumento a vida difícil que ele tivera. Os pais não eram um modelo de perfeição, muito pelo contrário. Eram irresponsáveis, viviam de aplicar golpes, alguns envolvendo o próprio filho. Um dia, deram-se mal e foram presos e o filho, com 10 anos na época, foi para um abrigo de menores onde ficou até os 18 . Lá conheceu todo tipo de gente e aprendeu coisas que até Deus duvida.

Saiu do abrigo sem nenhuma perspectiva. Não tinha casa, nem emprego. Apenas uma sacola com duas mudas de roupa. Um pensamento percorreu sua mente, mas logo o afastou. Não queria ter o mesmo fim de seus pais. Caminhou por algumas horas sem destino, até chegar a uma praça e sentou-se num banco para pensar na vida. Olhou em volta. Uma mãe passeando com seu bebê no carrinho, um grupo de moças conversando e rindo, três crianças brincando e um homem jogando milho para os pombos. Ficou pensando que todas aquelas pessoas tinham família, casa... menos ele.

De repente, percebeu que o homem havia parado de jogar milho para os pombos e passava um lenço na testa, com uma certa agonia. Aproximou-se e notou que ele estava passando mal. "Senhor, precisa de ajuda?" O homem o olhou com ternura. "Filho, acabei de pedir a Deus que me enviasse um anjo e ele me enviou você. Você pode me acompanhar até em casa? Preciso tomar um remédio com urgência".

Sem pensar duas vezes, acompanhou o homem até sua casa, onde foram recebidos pela esposa e pela filha. Após tomar o remédio, o homem foi melhorando e acabou por convidar o jovem desconhecido para almoçar com eles, mesmo sob os protestos no olhar da esposa.

Durante o almoço, o jovem contou sua história, a qual provocou efeitos distintos em seus ouvintes. A mulher ficou horrorizada por estar almoçando com um "marginal", o homem apiedou-se com toda sua alma e a filha mal ouvira a história, pois estava encantada com aquele rapaz garboso.

Ao final, o homem relatou ao jovem que era proprietário de um pequeno estabelecimento comercial e estava precisando de um funcionário. Não podia pagar muito, mas oferecia também um quartinho nos fundos do local e as três principais refeições. Perguntou se o jovem tinha interesse. O rapaz mal conseguia falar tamanha sua emoção. Com a voz embargada, respondeu "Sim!".

Semanas se passaram e tudo caminhava bem, menos para a esposa que não se conformava com a situação. Não concordava com o coração mole do marido.

Alguns meses depois, um pouco antes do almoço um menino da vizinhança adentrou sua casa, aos gritos, avisando que o marido falecera enquanto jogava milho aos pombos, na praça. Havia se esquecido de novo de tomar o remédio e dessa vez nenhum anjo foi enviado para salvá-lo.

Após alguns dias, a emoção da perda foi cedendo lugar às coisas práticas da vida. A viúva viu a oportunidade de livrar-se do jovem intruso. Enquanto o marido estava vivo, ela nada poderia fazer. Mas, agora, era ela quem dava as cartas. Mandou chamá-lo e, de forma direta, sem se preocupar em escolher palavras, disse-lhe que o trato estava desfeito e que ele estava demitido. Tinha uma semana para arrumar novo local para morar e para trabalhar. A filha, que ouvia a conversa atrás da cortina, apareceu e, com uma voz firme, disse que a mãe não poderia fazer aquilo. A mãe, estupefata, custava a acreditar que aquela menina, que mal abria a boca, estava questionando uma ordem sua. Olhou para a filha com o olhar de quem vai cuspir fogo, deixando claro que não admitia ser contrariada. Mas, então , um verdadeiro tsunami se formou e arrastou tudo, deixando o caos no lugar de todas as suas convicções. A filha estava grávida de dois meses e ele, aquele "marginal", era o pai.

A contragosto, a mãe organizou o casamento. Afinal, seria pior ter em casa uma filha solteira grávida e um neto sem pai.

Casaram-se dali a um mês, numa cerimônia simples, só para os íntimos. Seis meses depois, nascia um lindo e saudável menino, que por algumas semanas, fez a paz reinar naquela casa. Depois da trégua , tudo ficou igual ou pior do que antes. A mulher implicava cada vez mais com o genro. Tudo nele a incomodava e , para evitar aborrecimentos, ele ficava cada vez mais tempo fora de casa. As cervejas e cachaças do fim de semana passaram a ser diárias, o maço de cigarros, que durava um mês, passou a ser consumido em um dia. Os vícios começaram a tomar conta da vida dele de forma assustadora. E claro, a sogra tinha, a cada dia que passava, mais motivos para reclamar.

Ia trabalhar bêbado, passava troco errado, pegava dinheiro do caixa para jogar no bicho. Dormia pouco, comia mal. Seguia à risca o manual "Como levar uma vida nada saudável ". A esposa, mesmo triste, compreendia e perdoava, pois ele podia ter todos os defeitos, mas era um bom marido e um pai sensacional. E era verdade. Era carinhoso com a esposa e tratava o pequeno Bebeto como um príncipe. Não à toa , a primeira palavra falada pela criança foi "papai".

Cinco anos se passaram e tudo continuava quase igual , a não ser pela viúva que, após um acidente de carro, foi fazer companhia ao marido.

A família agora se resumia a três pessoas: Bebeto e seus pais. A vida havia melhorado um pouco, porque, após quase decretarem falência por duas vezes, a esposa assumiu a administração dos negócios e saíram do vermelho.

Com a vida desregrada que ele levava, não foi surpresa quando começou a sentir umas pontadas. A esposa insistia para que fosse ao médico fazer um check-up. Ele relutava, mas um dia recebeu um ultimato: teria que escolher entre check-up ou divórcio. Escolheu o check-up.

Após um mês de exames e consultas, chegou em casa radiante, dizendo à esposa em tom triunfal que tinha saúde de ferro. Mesmo assim , reconheceu que precisava mudar alguns hábitos se quisesse preservar o casamento e a família. Cometendo pequenos deslizes aqui e ali, deixou de fumar excessivamente, só tomava uma cervejinha no fim de semana e tentava ao máximo esquivar-se dos demais vícios.

Seis meses se passaram. E , pela primeira vez , sentia que tudo estava dando certo em todos os segmentos de sua vida. Era o homem mais feliz do mundo! "O que poderia dar errado?"

Naquela tarde, ele e a esposa foram até o banco tentar conseguir um empréstimo para investir no estabelecimento comercial, que estava precisando de umas injeções monetárias. Saíram do banco satisfeitos com a resposta positiva do gerente.

Deram três ou quatro passos e ele subitamente caiu no chão. A esposa o sacudia, gritava e nada. Chamaram uma ambulância.

Um pequeno tumulto se formou no estacionamento do banco. Enquanto o paramédico tentava a reanimação do homem, a mulher não parava de gritar .

O paramédico que tentara em vão reanimar o corpo, lamentava. "Sinto muito! Fiz o que pude. Mas ele já estava morto. Foi um ataque fulminante. Qual o nome dele?"

Desolada, a mulher respondeu

com voz trêmula :"Roberto. Roberto Rocha ".

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Três dias depois, num domingo pela manhã, de chuva torrencial, a mulher segue abalada com a tragédia que se abatera sobre sua vida. Segura os exames feitos há seis meses pelo marido. O nome em destaque "Roberto Rocha". Logo abaixo, a data de nascimento : 18 de fevereiro de 1995. Culpava-se por não ter pedido para ver o exame. Teria percebido o erro!

Do outro lado da cidade, ele toma mais um gole de café e pega o envelope . Tantas vezes olhara aquele exame e não percebera. Hipnotizado pelo próprio nome em negrito, não vira a data de nascimento: 18 de setembro de 1998.

Suspira profundamente! No próximo aniversário, no dia 18 de fevereiro, comemoraria seus 29 anos, comendo um delicioso risoto de camarão, seu prato favorito!

Ane Rose
Enviado por Ane Rose em 24/05/2023
Reeditado em 26/05/2023
Código do texto: T7796399
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