A vida como ela não é
Andava pela rua atordoado. Qualquer pessoa que o visse, facilmente o confundiria com um bêbado. Não via nem ouvia nada ao seu redor. Apenas as palavras que ouvira do médico ecoavam em sua mente "seis meses de vida".
Como podia ser? Tão jovem... com tanta vida pela frente. Acabara de pedir a mão da noiva em casamento. Tinha uma vida financeira estável. Era sócio de um escritório de advocacia. Antes dos 30, já havia conhecido nove países. Era bonito, simpático , gentil, educado, honesto, trabalhador, generoso, divertido, inteligente... O homem que qualquer mulher adoraria ter como marido.
Acordou de seu transe, após uma buzinada e um grito " Está louco? Quer morrer?". Então, deu-se conta de que estava no meio de uma avenida movimentadíssima. Seu subconsciente de pronto respondeu "Não! Não quero! Mas vou morrer. Só tenho seis meses."
Viu um bar na esquina. Entrou, sentou, pediu uma água. Bebeu dois goles, pagou. Pediu um carro de aplicativo e foi para casa. Precisava organizar as ideias.
Mal chegou em casa, jogou-se no sofá e começou a pensar no que iria fazer. Pensou em antecipar o casamento e viver seis meses de lua de mel. Pensou que poderiam ter um bebê. Claro que ele nem iria conhecer seu rebento , mas deixaria um filho, um fruto seu para o mundo. Depois pensou que seria tão injusto com sua noiva. Logo após poucos meses de casamento, ia deixá-la viúva e grávida. Pensou em vender sua parte na sociedade do escritório e comprar uma bela casa para seus pais que tanto contribuíram para sua formação . Mas também desistiu dessa ideia sem saber exatamente o porquê.
Pensou tantas coisas. Tomou tantas decisões e voltou atrás. As ideias vagavam pela sua mente como se fossem um furacão em alta velocidade. O melhor seria que não soubesse do seu veredito. Maldita hora que ouviu a noiva e foi fazer um check-up. Poderia viver na ignorância, feliz nos seus últimos seis meses de vida . Olhou os exames pela enésima vez na esperança de que lá não estivesse seu nome. Mas suas esperanças escoaram tão logo viu em negrito "Roberto Rocha". Lembrou-se de que o médico, na tentativa de amenizar a situação, dissera-lhe que ele não iria sofrer. Que teria um ataque fulminante . " Que não iria sofrer.... E que nome dar ao que ele estava sentindo naquele momento?"
Desejou embebedar-se para esquecer aquele pesadelo por algumas horas. Olhou ao redor. Não havia nenhuma bebida alcoólica. Jamais colocara uma gota de álcool na boca. Um pensamento foi puxando outro e sua vida desenhou-se em sua mente como num filme.
Desde criança , sempre fora o melhor aluno da turma, daqueles que dão orgulho aos pais e aos professores. Conseguiu entrar na faculdade na primeira vez que tentou. Conhecera sua única namorada ainda na adolescência e com ela perdera a virgindade. Não saía com os amigos, exceto em alguma comemoração especial. Das vezes em que viajara para o exterior, havia sido a trabalho. Quando lembrava, tirava uma foto. Mas nem sempre isso acontecia. Não fumava, não bebia, nunca usou drogas. Chegou a uma conclusão: ia morrer dali a seis meses e não havia aproveitado a vida plenamente. Em meio a esses pensamentos, acabou adormecendo.
No dia seguinte, acordou com o toque do celular. Era sua noiva. Perguntou como havia sido sua consulta. Tudo veio a sua mente de novo. Mas, limitou-se a dizer "Tudo bem!".
Após desligar o celular, respirou fundo e foi tomar banho. Enquanto a água escorria pelo seu corpo, desejou ardentemente que tudo aquilo fosse um pesadelo. Uma última esperança nasceu na sua alma e , então, foi até à sala. Abriu o envelope. Suspirou. Em negrito, seu nome destacava-se "Roberto Rocha". Não havia dúvida: só lhe restavam seis meses. Naquele momento, decidiu o que fazer.
Abriu o aplicativo do banco e verificou que sua conta estava bem recheada. O dinheiro era mais do que suficiente para viver com glamour pelos seis meses restantes. Não precisaria trabalhar. Não precisaria acordar cedo ou passar noites em claro estudando casos complicados.
Em seguida, mandou mensagem para a noiva marcando um almoço em seu restaurante favorito. Depois saiu para fazer compras. Foi ao shopping e comprou roupas que, até então, não combinavam com seu estilo. Não queria ser mais o cara das roupas caretas, sóbrias. Queria ser o cara moderno, do tipo que causa alvoroço quando passa. Entrou no salão e saiu de lá com um visual completamente diferente, que em nada lembrava um advogado com credibilidade.
Ao vê-lo, a noiva reagiu com espanto. Quase não o reconheceu. Não tinha certeza se estava gostando daquele "novo homem". Logo após o almoço, chegou à conclusão que não apenas não gostava como odiava aquele homem com todas as suas forças. Disse-lhe algumas verdades, que não exerceram nenhum efeito aparente sobre ele e saiu do restaurante aos prantos e resmungando "Após quatro anos de namoro, dois meses de noivado, acabar tudo assim..."
Sentiu que um peso imenso saíra de suas costas. Fez com que ela sofresse agora para que não sofresse mais dali a alguns meses. Ela era jovem, ia encontrar um cara legal. Sentiu uma pontada no coração ao pensar isso, mas sua decisão estava tomada.
Foi para casa, olhou-se no espelho. "Já que vou morrer... vou aproveitar a vida em grande estilo." Daquele dia em diante, fez tudo que não havia feito até então. Bebeu, fumou, transou com uma infinidade de mulheres. Não pisou mais no escritório, mesmo com todos os alertas do sócio e a preocupação dos pais. Os amigos mais próximos, a família, alguns clientes, todos tentavam conversar com ele para entender o que estava acontecendo . Nenhum resultado. Quanto mais adentrava naquele mundo desconhecido, mais gostava. " Quanto tempo perdi sendo o cara certinho. Para que comer comida saudável, praticar atividade física, não beber, não fumar, não ser promíscuo? Vou morrer do mesmo jeito...".
Os meses passaram e ele estava praticamente irreconhecível. Noitadas e mais noitadas, olheiras, bebidas em todos os cômodos da casa. Cada dia uma mulher diferente. A conta bancária só registrava saídas nos últimos meses. A infelicidade travestida de felicidade o iludia. Mas ele nem se importava.
Já havia se passado quase seis meses desde aquela tarde que mudara sua vida. Num dos raros momentos de sobriedade, resolveu ir até o supermercado comprar ingredientes para fazer um risoto de camarão, seu prato preferido. Poderia morrer a qualquer momento e morreria feliz depois de saborear aquela iguaria.
Enquanto dirigia, não percebeu que havia um tumulto duas quadras antes do supermercado. Conforme se aproximava, ouvia gritos femininos "Roberto... Roberto..." Pensou que alguém o estava chamando, mas, então, viu uma mulher debruçada sobre um corpo estendido no chão. Um paramédico que tentara em vão reanimar o corpo, lamentava. "Sinto muito! Fiz o que pude. Mas ele já estava morto. Foi um ataque fulminante. Qual o nome dele?"
Desolada, a mulher responde com voz trêmula :"Roberto. Roberto Rocha ".