CANTIGA (BVIW)

“Lá em cima do piano/tinha um copo de veneno/ quem bebeu, morreu [...]” Cabeça turbinada, Guta ruminava os versos da cantiga de infância: a cena de Cleber e Lelê aos beijos no sofá acendia-lhe um ódio insuportável. O noivo e a amiga de uma vida inteira... Era um prato indigesto demais. Foi até a despensa, tateou o frasco escondido no fundo da prateleira. O líquido, inspiração herdada de um livro de Ágata Christie, brilhou contra a luz da janelinha basculante. Como viver depois do que vira no apartamento de Cleber?

Guta pingou vinte gotas na colher de sopa. Seriam o suficiente. Sua mente fervilhava em desejos de vingança: os traidores amargariam em remorso pelo resto de suas vidas. Foi num repente que a cantiga voltou num verso tardio: "[...] quem bebeu, morreu/ o azar foi seu.” Ah, se o próprio sacrifício fosse resolver! Não iria. Derramou o líquido na pia, soltou a água, sorriu. Acabava de ter uma ideia muito melhor. E nessa nova versão da história o azar não seria o dela. Para isso precisava apenas estar viva.

Tema da semana: Se fosse resolver (conto)