SÓ MAIS UM, ANJO DA MORTE

– Você vai passando com calma... buraco por buraco... pra concluir o espiral do caderno... – Ele me disse, num tom debochado, como quem me chama de imbecil.

 

– Grato... – Respondi num tom seco. E continuei tentando consertar o caderno.

 

Ele então se sentou...

 

Vestia uma roupa azul clara, folgada, uma calça e uma blusa sem estampa. Sentou-se ao meu lado e sua roupa parecia incrivelmente limpa. Tinha um cabelo castanho assanhado, como se nunca tivesse penteado o cabelo na vida.

 

– Eu não disse que você podia sentar aqui, comigo.

– “Owwn...!” desculpe, meu amiguinho! Será que POSSO me sentar com você?

 

Olhei-o nos olhos. Senti o tom debochado de novo... mas ele tinha uma cara boa... um rosto... terno. Eu não sabia explicar. Tinha muita ternura...

 

– Tá, tá...

 

Ainda sem “terminar” de consertar meu caderno, deixei ele de lado e peguei um livro chamado “DE REPENTE, ACIDENTES” ... eu lia uns dois ou três parágrafos e depois passava alguns minutos encarando o vazio, olhando pra frente e refletindo sobre o que tinha acabado de ler... Uma mulher com cabelos brancos e muito bonita (tinha muitas atitudes em seus trejeitos e falas) escutava sua namorada (um pouco mais nova, bonita também), que comentava com ela sobre festas de rua e turismo voltado ao público gay. E como isso influenciaria no turismo da Bahia. Um papo importante... intenso... Incrivelmente chato, pra mim no momento...

 

Tentei voltar ao meu livro, mas percebi que o cara se aproximou demais... de modo que ficamos encostados. Fiquei irritado pois odeio desconhecidos se encostando em mim. Fiz uma cara feia e ele se levantou sem graça, rindo... ficou zanzando em volta das mesas do bar, dizendo coisas enquanto observava as pessoas... “humm...”, “Não, nãoo... essa não...”, "Ahhh legal, muito bom..."

 

Fechei o livro e fiquei olhando a cena, perplexo. Muito mais perplexo ainda por ninguém achar ruim e nem dizer nada. Na verdade o ignoravam totalmente. Então ele andou até outra mesa. Tinha uma moça com uma roupa azul tomando uma cerveja preta, degustando e cheirando a espuma como uma grande entendedora, degustadora de uma boa merda de líquido preto. Minhas costas e mandíbulas estavam doloridas... Eu sentia uma espécie de... carga. Não estava propriamente retado da minha vida, nem nada... Era apenas... um peso que volta e meia sentia quando olhava em volta... Não chegava a ser horrível e nem insuportável, provavelmente no dia seguinte eu estaria lá de novo. E horas antes estaria entusiasmado, ansioso para estar lá... e viver daquela babaquice.

 

Tinha um restaurante ao nosso lado. A garota pôs o copão de cerveja em cima de mesa, acendeu um cigarro fazendo trejeitos hollywoodianos, enquanto seu namorado usava o celular pra tirar fotos de si mesmo e do prato de filet,  intacto. Tinham cara de fome, mas a fome de ver a comida nas fotos, parecia ser bem maior. Então o meu “amigo" esquisitão se abaixou BEM NA FRENTE deles e praticamente enfiou o nariz no copo da moça, para cheirar a bebida. Mordi os lábios de susto e arregalei os olhos... o mais incrível foi que o casal reparou apenas em minha reação assustada e ficaram olharam pra mim, fazendo típicas carinhas do nojinho de "Pobre Plus", enquanto o louco continuava cheirando sua bebida e murmurando coisas como: “Delícia...”, “essa é das boas!". E então voltou-se pra mim, comentado comigo: “Mas, este aqui... RUM! Bebendo desse jeito, querendo pegar a estrada pra Salvador daqui a pouco?? Esse... Eu vou ter que levar comigo.” – Foi então que percebi que só EU podia ver aquele homem estranho. Ele deu uma risadinha enquanto retornava até mim se sentando na calçada em frente aos meus pés.

 

– Porque só eu te vejo? – Sussurrei.

– Engraçado... você nem vacilou... não gritou, não entrou em pânico... nem mesmo se moveu do lugar.

– Porque só eu te vejo? – Insisti.

– Porque eu quero, ué... – Respondeu dando de ombros. – Inclusive, basta pensar que eu te escuto.

 

Tentei me fingir de desinteressado e voltar a ler. Tirei da mochila um livro chamado “NUMA FRIA” mas não conseguia passar do primeiro conto. Olhei ele novamente. O doido estava observando todos que passavam e fazendo anotações. Anotava seus nomes, como se já conhecesse as pessoas.

 

– Você é tipo, a Morte?

–Quase acertou... sou um ANJO da morte. Um só! De um montão...

– Cê veio me levar?? Posso levar meus livros e meu notebook comigo?

–Não vim te levar, amiguinho. HOJE não. – Respondeu sorrindo, com toda aquela ternura.

 

Sentamos juntos... Sim, dessa vez nos sentamos JUNTOS no chão. Encostados na parede abaixo da janela de uma casa. Uma velha apareceu com o cotovelo apoiado e a mão no queixo. Ela usava óculos e parecia que todas as suas lembranças e mazelas estavam armazenadas em seu queixo... olhei pra cima e acenei, ela sorriu e continuou olhando a rua.

 

– Ei.

– Fala...

– E essa? ... Já vai morrer?

– Em breve...

 

Continuamos sentados ali por muitas horas... uma mulher de amarelo com uma fita na cabeça passou, e também um homem com um chapéu branco que não combinava nada com sua blusa azul bebê, tambem passou, e ele só anotando...

 

Então...

 

Uma mulher magrinha e bem linda, parou para conversar comigo. Eu pensei que se tratasse de outro anjo, amigo do anjo da morte ao meu lado (talvez fosse o anjo da vida, sei lá...) ela falou sobre política e eu segui concordando com tudo que ela dizia, mesmo sem prestar tanta atenção... Seus olhos eram meio puxados... castanhos e muito vivos. Sua voz era firme, mas jamais era alta demais. Voz de mulher que sabe o que quer. Sem gritos, sem sussuros... Ela me contou que estava passeando pelo mundo já há seis anos seguidos... seus olhos eram tão castanhos... Castanhos, muito castanhos...Ela não era um anjo (mas podia ser) ... Ela era uma mulher chamada Raquel. Raquel pegou um papel e me ensinou dois truques de matemática (só porquê eu disse que odiava matemática) um sobre raiz quadrada e outro sobre a tabuada do sete.

 

– Ela é um anjo? – Perguntei quando ela foi indo embora...

– Não, amigo... hahaha... Ela é um tipo ótimo de ser humano, mas é só isso.

– E ela já vai morrer?

– Não, não hoje não! Hoje não...

– E amanhã?

– Amanhã TAMBÉM não.

– Humm...

 

(H.B)

 

 

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 17/05/2023
Código do texto: T7790653
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