O Péssimo Acompanhante
Juiz de Fora, dia 17 de fevereiro de 2023
Os carnavais mudam de data em todos os anos, mas a tristeza que eles me ocasionam é sempre igual.
Eu me chamo João. Tenho 52 anos. Provavelmente esse texto nunca será lido. Caso seja, não haverá importância. Ele representa mais catarse para mim do que qualquer coisa. É uma carta sem remetente, um documento que existe apenas para tentar suavizar minha dor, fracassando de ofício nessa missão.
Eu tinha um filho. Exatamente, eu tinha. Ele morreu no carnaval de 2016. Não é tão claro, na realidade, asseverar quando ele morreu. Naquele fatídico ano, o carnaval ficara marcado para a primeira semana de fevereiro. Madrugada do dia 4 para 5. Eu nunca esqueço esse dia, até porque eu sinto que ele acontece todos os dias. Aconteceu no dia 6 de fevereiro de 2016, aconteceu no dia 7 de fevereiro de 2016, aconteceu do dia 8 de fevereiro de 2016… a acontece todo dia até o presente momento. Eu achei que um dia, após vivenciar o mesmo dia em todos os dias que me sucederam desde então, a dor não cessaria, mas ficaria menos dolorosa. Erro todos os dias em relação a isso. Os batimentos cardíacos se cessaram no Centro de Terapia Intensiva, quase dois meses depois, no dia 4 de maio de 2016, mas não é certo dizer quando realmente ele partiu… “Os ferimentos verificados no acidente nunca foram compatíveis com a vida” dizia um dos boletins de necrópsia.
Foi em um acidente de trânsito. Ele morava com a mãe em São Borja, ia viajar para o Rio. Eu tinha completa noção de que naquele momento da vida, o que mais queria ele era a esbórnia, por isso nunca me importunei com a preferência dele por esse tipo de viagem. Não só nunca me importunei, como incentivava, deixava claro que lugar de jovem é com outros jovens, não com os pais. Lembro das palavras no telefone na madrugada. A atendente foi extremamente atenciosa, mas nem se tivesse sido a própria voz de deus seria algo confortante… Elas, as palavras, reforçam uma culpa que racionalmente eu sei que não é minha, mas que meu coração não consegue me perdoar. Elas e a as sirenes das viaturas das ambulâncias da polícia, do corpo de bombeiros e das ambulâncias. Em um ônibus com 60 passageiros, apenas o meu filho morreu.
Eu não acredito mais em deus. Eu acredito na morte. Ela passou a morar comigo, todos os dias. A personificação da morte não é tão demonizada como dizem. Consegue até ser educada, cortês. Não diz muita coisa sobre seus planos, sobre seus objetivos. Parece que é pouco resignada com o que faz. Nos dias 4s de maios ela sempre diz: “mais um ano”. Nestes dias evita passar o café, não quer brigas.
Uma parte do processo é apodrecer com o luto vendo as pessoas fazendo o delas. Eu sei que meu luto ás vezes é estressante, mas eu realmente não sei se quero ou consigo me desfazer dele.
João, o vivo-morto
[TEXTO FICCIONAL]