Lendas  (Jessiely Soares)


O calor respinga em bicas, bafo quente que sopra do chão, parede morna pra se encostar. O dia passou lento, mórbido, calado.

Sentada no eirado de casa, vejo o reflexo das luzes de muitas outras varandas refletindo nas águas mansas do açude que sangra a cidade. Durante tantos anos, esse barulhinho das marolas era só causo dos mais antigos: "Esse açude sangrou e inundou a cidade em 88".
Que seja, mas estamos em 2004. E até o mês passado era só areia a pedra... Quem diria!

Tenho necessidade, na maior parte do tempo, de estar sozinha e melancólica. Não fossem esses meninos correndo e pulando no meio da rua o ambiente estaria perfeito. A lua que precipita raios brancos, os postes que refletem no ondular leve da água, só esse vento morno que me tira a concentração...
Demoro pra me acostumar!

O pensamento embriagado de calor, vagueia, recria, repensa. Os olhos descortinam a paisagem noturna tão refinada, grosseira e seca durante o dia... Fito o açude e no meio daquela água marrom, distingo uma pequena ilha. Dizem que lá, mora uma serpente que encanta homens que se atrevem à pescaria nas noites sem lua. Há quem já tenha visto nas noites de lua ela subir faceira na maior árvore da ilhota. Vai saber! Eu sempre presto muita atenção pra tentar enxergar seus olhos de fogo.

Dizem também, que esses redemoinhos de areia seca, que teimam em me pegar sem aviso, carregam espíritos de caboclos dos antigos cafezais. Morreram sem liberdade e hoje estão aprisionados a esses ventos turvos que embaraçam meus cabelos e me fazem praguejar contra o mundo, ao meio dia, sob um Sol de matar. Dessa história também não duvido, faço o sinal da Cruz e vou em frente. Preto Velho que fique pra lá.

Ao longe do açude, naquele conjunto de serras, emerge o Pico do Yayú. Conta-se que ganhou esse nome de uma índia cativa, que pulou depois de ter visto Deus. Também eu pularia, deve ter sido um susto daqueles... Hoje ainda pode-se ouvi-la gritar: Yayú! – Quando o vento açoita o alto do morro.
E homens e homens já morreram carregados do pico, por ela.

Assim, se adormece no Sertão dos meus avós, sob lendas e assombrações.

Mas, por hoje bastam-me tantas histórias, tantos causos. Deixarei os monstros que assombram os desavisados turistas. Não lembrarei também dos homens bravos e aventureiros que cortam o açude em busca dos olhos de fogo da serpente da ilha encantada.

Vou para a minha cama, dormir perigosamente, com os meus fantasmas de estimação.

(Jessiely Soares)
Autores do Nossarte
Enviado por Autores do Nossarte em 14/12/2007
Reeditado em 10/01/2008
Código do texto: T778393