Redenção

Cresci como crescem os esquecidos: com uma sede insaciável.

A miséria à porta e a discórdia ao pé da cama eram combustíveis. Eu os odiava, é verdade. Odiava meus pais e a falta de sorte. A infância foi regada a ódio e dor, me arrependo muito de palavras que hoje são irrevogáveis, me arrependo de quase tudo que fiz quando, desesperado, tentava aprender como viver. A verdade é que nunca aprendi. Essas memórias aqui postas são uma espécie de redenção pessoal.

A adolescência veio como um automóvel desgovernado, derrubou todas as minhas certezas absolutas, me arrancou do conforto da ignorância e me presenteou com questões jamais respondidas. E passou, rápida como uma chuva de verão e intensa como um terremoto, me vi jogado às responsabilidades da vida adulta, com uma casa para manter e a audácia de continuar estudando apesar de todos contratempos.

Eu odiava meu trabalho e ansiava por oferecer uma velhice digna para meus pais. Essa responsabilidade foi um peso que carreguei por muito tempo. E eu tinha muito medo. Medo de falhar, de não conseguir retribuir, de não me redimir, de eternamente me sentir culpado. Não consigo lembrar quantas vezes precisei trancar a faculdade de jornalismo até que conseguisse me formar. Mal comemorei. Era só uma obrigação que tinha demorado tempo demais para cumprir. Eu precisava logo ir para o próximo passo, não tinha tempo de me demorar nas conquistas.

Parecia tudo dez vezes mais difícil para mim, os empregos, a permanência, as seleções, os estágios, os relacionamentos, os estudos, o dinheiro. Parecia que eu estava constantemente perseguindo coisas que me fugiam entre os dedos. O quase. O quase foi sempre uma constante em minha vida. Quase noivo, quase concursado, quase efetivado, quase feliz. Posso dizer que apesar de todos os quases, tive mais sorte que maioria dos meus colegas, em minha turma da escola fui um dos poucos a entrar na faculdade, me agarrei como um faminto aos professores, suguei todo conhecimento que eles puderam me oferecer e contra todas as expectativas me formei, entrando na faculdade. Burlei o sistema, não ia perder a chance.

Mas perdi muitas coisas pelo caminho, a minha sede por sobrevivência me cegou em muitas instâncias. Foi assim que perdi Esther. Esther era perfeita, o tipo de pessoa que torna a vida de todos ao redor mais ensolarada. Tudo se iluminava perto dela. Mas eu… eu estava ocupado demais tentando sobreviver. Esther já tinha a vida feita e queria me ajudar. Eu negava toda ajuda que ela me oferecia, eu era jovem e sentia meu ego ferido. Eu queria fazer isso por ela. Mas ela não precisava. Me afundei em inseguranças e lamentos. Me vi inferior, senti que não a merecia, afinal, mal e mal conseguia sustentar a casa em que vivia com meus pais. O que eu poderia oferecer a uma mulher que já tinha tudo?

Esther me amava, sei que sim. Todos viam nossos olhares apaixonados e planos estabelecidos. Ia pedi-la em noivado no fim de outubro, assim que fosse efetivado no estágio em uma editora local. Não fui efetivado. Fiquei envergonhado, passei a evitá-la, a desdenhar sutilmente de suas conquistas, rebaixá-la de forma velada… até que a trai. Não planejei o acontecido mas sentia uma enorme necessidade de me reafirmar enquanto homem, quando foi acontecendo não fiz nada para evitar. Eu poderia ter feito. Poderia ter negado, poderia ter voltado mais cedo para casa, poderia não ter bebido. Mas não o fiz. Magoei de forma irreversível a única mulher que amei e a única que me amou. E Esther era inteligente o suficiente para me deixar.

Queria dizer que aprendi muito com meus erros, mas não tenho certeza. Continuo errando todos os dias e a única coisa que posso fazer é continuar tentando. Não sei ser diferente.

Consegui dar uma velhice confortável aos meus pais, mas minhas ações continuaram me perseguindo por muito tempo. A agonia e o desespero não foram embora. O quase também ficou.

Hoje, sentado nessa mesa, revendo alguns dos meus passos em uma vida pouco interessante, curta e dedicada quase que exclusivamente ao essencial, não tenho o que gabar. A solidão sempre me foi imperativa como filho único e agora vibra mais que nunca. Estou indo enterrar meu pai. Ele morreu poucas semanas depois da minha mãe, ainda bem. Era terrível observar o vazio que se apoderou de seus olhos após a morte dela. A vida é esse abrir e fechar de portas?

Sinto o vazio se apoderando dos meus olhos. É tarde para receber a absolvição dos meus pais. Esther nunca me absolverá. A absolvição divina não me livrará do peso mortal da consciência. Mas ainda tenho o que viver. Não posso me afundar na culpa. Espero, com paciência, que a mesma sede por sobrevivência que me moveu durante meu crescimento renasça agora. Mas diferente: quero agora a sede de viver.

Suzane S Ângelo
Enviado por Suzane S Ângelo em 05/05/2023
Código do texto: T7780326
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