A CHAVE DA PARTIDA
Ela partiu... sequer olhou para trás, passos lentos e o olhar fixado no caminho longínquo por onde deveria passar. Via apenas uma luz no meio da escuridão. As lágrimas teimavam em cair sobre o seu rosto, precisava ser forte, fazer do instante um faz de conta bonito e feliz. São tantas as coisas deixadas, desarrumadas, empilhadas no canto de parede. Naquele velho móvel do quarto, muitas roupas, ainda não usadas e, outras, tão surradas pelo tempo. Numa prateleira ao lado, o perfume preferido, um talco suave, o batom avermelhado, a escova de cabelo e a tiara dourada. Na cabeceira da cama, o terço e o livrinho de salmos, companheiros da noite. No baú, herdado dos avós, muitas lembranças, dentre elas, uma colcha de retalhos feita com tecidos de roupas usadas pela família, tornando-se um lindo e saudoso memorial. Na sala, aquele antigo sofá azul, que lhe servia de aconchego, as almofadas coloridas com as suas cores prediletas. Na parede central, emoldurada, uma imagem da nossa Senhora e do Sagrado Coração de Jesus. Do outro lado, havia um quadro com fotos bem antigas dos filhos ainda crianças, e outro com uma linda paisagem de inverno. Na sala de jantar, bem no centro, a mesa comprida com cadeiras de assentos estampados de vermelho, um tamborete de madeira escura, uma espreguiçadeira e, no armador, um antigo chaveiro pendurado. Na janela, o seu amado gato amarelo e, encostado na antiga máquina de costura, o querido cachorro e o barulhento papagaio. Sobre uma pequena escrivaninha, resquícios de lembranças numa caixa de papelão, que guardava fotografias de pessoas queridas, em preto e branco, e que se transformavam em agradável passatempo rever aquelas fotos que a faziam voltar no tempo e relembrar muitos momentos vividos. Na cozinha, toda a bagunçada, o tempo não foi suficiente para colocar cada coisa no seu devido lugar, panelas espalhadas, a pia acobertada de louças sujas. Na mesa, a fruteira com restos de frutas já estragadas. No armário branco, uma desordem, restos de mantimentos, alguns com validade vencida. Não tinha mais nenhum minuto, tinha que partir, deixar tudo aquilo que lhe pertenceu por anos a fio. Entregou a chave da porta da frente da casa. Anoiteceu! O sol se pôs, o vento passou, a neve caia, a lua surgiu e uma linda estrela solitária brilhou.
Maria de Fátima Fontenele Lopes