Último dia

Acordo sendo assaltada pelo infortúnio da existência, sou jogada nessa realidade em que tudo é diferente. Você dizendo que não quer mais me ver e saindo pela porta, o som surdo ecoando pela casa e todas minhas certezas desabando. Não consigo respirar, estou paralisada, meu peito tem peso de mundo. Meu Deus, como vou viver desse jeito? Não sei se consigo levantar. Não quero fazer nada. Queria que fosse um sonho ruim, queria não existir. Existir sem ela aqui é dolorido demais para mim. Tenho muitas coisas para fazer. Preciso aceitar minha condição humana e levantar. Um café vai me acordar. Preciso me levantar. Agora.

(...)

Agora!

Levantar, banheiro, escovar os dentes. Cozinha, pão, manteiga, mordida. Ferver água. Mordida. Mastigar. Engolir. Vazio. Mordida. Mastigar. Engolir. Vazio. (...)

Barulho de fervura, passar café, café na xícara, beber.

Dor…

Estremeço, sinto a dor se espalhando até as extremidades do corpo e só então entendo que me queimei ao beber o café. Agora minha língua, antes adormecida, passa a ficar desconfortavelmente presente em meu corpo. Me sinto, também, desconfortavelmente presente em meu corpo. A xícara branca transfere seu calor para minhas mãos frias, observo o lascão em sua borda, ela sempre gostou dessa xícara. Dizia que o lascão deixava o café mais forte, apenas para disfarçar o fato de que ela mesma tinha deixado a xícara escorregar de suas mãos enquanto lavava. Eu nunca me importei muito com objetos e louças, mas essa é a coisa mais preciosa que possuo nesse instante. Eu devia mandar uma mensagem para ela, dizer que sinto muito, que podemos corrigir isso, que não faz sentido, nunca brigamos, nunca brigamos, nunca nunca nunca nuncanuncanunca…

As lágrimas se derramam sobre a xícara que esquenta minhas mãos, o princípio físico, então, confere que minhas mãos também esfriam a xícara, o café, o ambiente… o abismo me olha de volta. Os corpos buscam equilíbrio, o meu só se equilibra com você. Desequilíbrio. Desordem. A casa em desordem. A mancha de vinho no tapete, as taças quebradas e você sentada ao lado do sofá com as mãos no rosto, em prantos, repetindo incansavelmente que me odeia. Eu quero voltar no tempo, corrigir tudo, usar as palavras certas, o tom certo, a aproximação exata, o toque milimetricamente calculado para te acalmar, utilizar da gentileza que sempre me escapou entre os dedos nos momentos de fragilidade. O meu medo desesperador de te perder fez com que isso se tornasse realidade.

O café já esfriou.

Preciso me recompor e ir trabalhar.

Passo pela rua em que nos encontramos pela primeira vez, observo o banco da praça em que estava sentada quando ela me perguntou se eu tinha um isqueiro. Naquele momento eu já sabia que minha vida estava por incendiar, só precisava do isqueiro. Lágrimas irrompem e sei que preciso tirá-la da minha cabeça. Preferiria morrer a ter que tirá-la dos meus pensamentos. Uma mensagem. Será que uma mensagem resolveria? Preciso tirar isso da minha cabeça, não quero piorar as coisas. Foco no caminho. O caminho é sempre o mesmo. Rotina, mecânica, automatização. Virar à esquerda na casa amarela, cruzar a avenida, entrar à direita, na rua do grande flamboiã vermelho, andar reto até o boteco, cruzar na faixa de pedestres e virar à direita na primeira esquina com um hidrante. Passos firmes no caminho de sempre, agradeço por meu inconsciente conseguir me guiar enquanto tento manter minha mente longe de Cecília.

Falhei.

Falhei a manhã inteira em mantê-la longe dos meus devaneios.

Olhos vazios na tela do computador, são números que não me importam, pessoas que não me importam. Finjo que trabalho e faço o menos possível, quero ir embora, desisti das mensagens, preciso ouvir a voz de Cecília, preciso que ela me diga que está tudo bem, que ficaremos bem. Afinal, nós nunca brigamos. O horário de almoço bate e eu preciso ligar.

O número que você ligou encontra-se desligado ou fora da área de cobertura. Deixe seu recado após o sinal. (Piiiii.).

O número chamado não está disponível no momento. Por favor, tente mais tarde. Obrigado.

O meu horário de almoço é inteiramente dedicado a ouvir a repetição das ligações caindo na caixa postal. Ouço tantas vezes que o eco das palavras permanece em minha mente. Seus cabelos compridos caindo em ondas sobre seu rosto encharcado de lágrimas, belissíma até em sofrimento. O número chamado não está disponível no momento. Por favor, tente mais tarde. Obrigado. Sua mão deslizando pela minha cintura, a promessa de nunca partir. Vinho pelo chão. Por favor, não vai, não é bem assim! Vamos conversar, por favor! Minha mão tentando alcançá-la. Por favor, por favor, por favor... Súplicas. Lágrimas. O número que você ligou encontra-se desligado ou fora da área de cobertura. Deixe seu recado após o sinal. (Piiiii.). O som familiar e aconchegante da sua voz ao pé do meu ouvido. A luz quente do nosso apartamento acolhendo minha chegada. Soluços e berros. Ofensas trocadas. Já terminou o serviço? Pisco algumas vezes. Olho ao redor.

– Já terminou o serviço? – repete a voz de Andrea, colega de trabalho, responsável pelo departamento de vendas. Não consigo distinguir suas expressões, tudo me vem turvamente.

Balbucio uma resposta negativa qualquer e ela fala algo a respeito de que estou com péssima aparência. Não levo a sério e rapidamente sou devorada de volta para meus pensamentos e lamentações.

Estou percorrendo o trajeto de volta.

Virar à esquerda na primeira esquina com um hidrante. Cruzo a faixa de pedestres e dou de cara com o boteco aberto, muito barulho, indistinguível. Em mim, muito barulho, indistinguível. Preciso me livrar dos olhos marejados de Cecília. O gosto agreste em minha boca, ardor rasga a garganta, dormência pelo corpo.

Não sei em que copo estou. Me sinto confortavelmente fora de meu corpo.

Os meus soluços se misturam aos de Cecília. Me sinto bem. Preciso ligar agora preciso falar com ela onde está meu celular? e repetir que podemos nos resolver somos adultas nunca brigamos nunca nuncanunca vocês ouviram? nunca brigamos.

Olhos pesados, mente pesada, vejo lampejos… acho que estou dormindo…

Sons indistintos, pessoas encostando em meu braço e ombro, ouço ao longe uma voz feminina falando algo sobre hora de fechar. Demoro algum tempo até identificar onde estou e estabelecer-me de pé. Onde está meu celular? Será que falei em voz alta? Preciso ligar. A saudade e amargura se convertem fisicamente com o amargor em minha boca. Melhor morrer. Vejo se findo logo isso, me jogo da ponte?

– Onde está meu celular?

Sei que falei em voz alta, mas minha voz é estranha para mim mesma.

Me entregam o objeto frio.

As luzes artificiais da noite me encadeiam, os sons dos carros me atormentam e confio na automatização do caminho de volta para casa.

Entrar à esquerda, na rua do grande flamboiã vermelho. Cruzar a avenida.

Ouço um barulho musical vindo da minha mão, uma mensagem. O nome de Cecília estampa a tela, tento várias vezes desbloquear o aparelho. Começo a chorar e minha vista embaçada dificulta a tarefa. Leio rapidamente a mensagem, identifico apenas informações soltas em grande texto. Amor, reconciliação, nunca brigamos, conversar, triste, melhor, pensar, juntas, conversa. Li por completo a última linha: estou te esperando em casa, vamos resolver. Eletricidade percorre meu corpo, posso imaginar a chegada, a luz quente, o abraço quente, a tomarei em meus braços, pedirei desculpas e voltaremos ao que éramos antes: aconchego, segurança, calma, equilíbrio. Estou etereamente feliz. Meu corpo se torna mais leve e o amargor diminui, ouso levantar a cabeça. Luzes frias em minha direção. Cruzar a avenida. Som estridente. Impacto.

A casa amarela à espera de que eu vire à direita. A xícara branca com seu lascão à espera do café. Cecília à minha espera.

E o Nada.

Suzane S Ângelo
Enviado por Suzane S Ângelo em 30/04/2023
Código do texto: T7777017
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