Travessia
Sequer havia sinal de sangue no local. Somente no céu da boca de quem sentiu o gosto inconfundível da ameaça a descer à força entre o esôfago e a laringe. Apesar da iluminação natural do final de tarde sob a céu da Gamboa e de algumas poucas lâmpadas amareladas acesas no túnel João Ricardo, centenário senhor maltrapilho que insiste em não morrer de causas naturais, o medo era o mesmo que aquele que a total obscuridade era capaz de provocar.
As três mulheres correram enquanto puderam. A respiração era pouca e a coragem era ausente. Mulheres habituadas às inquietações da periferia e que circulavam pelo Centro do Rio somente nas ocasiões em que o trabalho impunha, escreveram na história dos casos de rua uma página tão sombria quanto inesquecível. Era fim de tarde. Fim de um trabalho de organização de evento cultural e de incentivo à leitura. Elas corriam. Cobertas da poeira da Gamboa e daquelas que provinham de revistas e das obras que seriam expostas.
Tudo limpo e em seu lugar. A última conversa animada, o último gole de café e a água com gás compartilhada antes de irem embora. Era agradável o passar do tempo e o ambiente estava preparado para receber os visitantes no dia seguinte. Eram amenas as risadas, a brisa, as aspirações imediatas. Saíram assim em direção a Central do Brasil, aproveitando o dia ainda claro e a companhia ofertada entre tagarelices.
Não houve testemunhas. Antes de começarem a travessia do João Ricardo, alguém lhes perguntou se não seria melhor usarem uma condução qualquer para chegarem à Central. Não acharam necessário, já que o trajeto seria curto e o amparo mútuo era de longa data. Alguns moradores de rua as espreitavam e examinavam até onde iria a atitude intrépida. Uma velha, vestida quase que como bruxa e que estava assentada no meio fio, as olhava em um misto de desprezo, presunção e ressentimento enquanto elas seguiam e sumiam das vistas dos passantes, iniciando, apesar da preocupação, a tarefa necessária.
Não havia ninguém no túnel além das três. A princípio, a insegurança lhes fazia sorrir, depois, ao perceberem que, conforme seguiam, a escuridão iria se estendendo sobre elas como um toldo sufocante e que uma presença rouca e de riso desafiador as acompanhava, começaram a correr muitíssimo, no afã de alcançarem logo o lado oposto, deixando para trás, sapatos, bolsas e outros pertences. O interminável céu de concreto era tudo o que tinham. Era tudo que as abraçava silenciosamente.
A aflição aumentava à medida que a outra extremidade do túnel não chegava, tão pouco sua luz salvadora. No céu já era noite fechada. A travessia no entanto, não terminara. Só foi sabido há muito passado, que do outro lado do túnel naquela ocasião, foi visto somente um homem sozinho, sisudo, e usando um chapéu. Alguns mais crédulos afirmam ser uma figura conhecida, homem morto em um incêndio no Cabeça de Porco no início do século, mas que vaga até hoje procurando ocupar um espaço que é seu por direito. Um naturalista entre criador e criação. Os mais céticos, que era apenas mais um morador da Providência e que, por coincidência ou não, não apareceu mais por ali após o ocorrido.
No dia seguinte, a polícia investigou com cuidado o local, e encontrou apenas um celular. O evento cultural tão esperado transcorreu normalmente. Nenhuma pergunta, nenhum estranhamento. A velha bruxa permanecia imóvel sentada sobre o meio fio desde a noite anterior. No relógio da Central do Brasil deram cinco da tarde. Sequer havia sinal de sangue no local.