A bossa do jazz
Espalhados pelos quatro cantos do mundo, fazendo turismo ou negócios, mas especialmente vivendo dentro do próprio território dos EUA, muitos cidadãos americanos modernos e democratas, mas fundamentalmente republicanos, acreditam profundamente que não se pode negar às demais pessoas que apreciam chá ou água de coco e arroz com peixe, o sagrado direito de escolher entre tomar uma Pepsi ou uma Coca-Cola. E para comer, um cachorro-quente ou um sanduíche de três andares, sempre acompanhados de uma indefectível porção de batatas fritas.
Em razão disso, fazia um bom tempo que forças e agentes dos Estados Unidos vinham levando a cabo sua inspirada missão de implantar a democracia em todos os países governados por ditadores que criavam empecilhos para a abertura de estabelecimentos de fast food em seus territórios. Mesmo que, visando atingir seus objetivos e os alvos militares inimigos, tivessem de destruir habitações, estradas, plantações de chá, arrozais, coqueirais, e exterminar grande parte dos habitantes.
Como tentaram com o Vietnã no passado, e algumas décadas depois com o Afeganistão e o Iraque. Ao final, em vez de entupirem o mundo de democracia, os ianques entopem-no com elevados níveis de colesterol ruim, populações revoltadas e armadas e uma porção de outras porcarias, algumas ditas culturais: filmes, livros, discos, shows, principalmente.
Em linhas gerais, essa era a crítica que fazia o artigo que Brian Mahoney estivera lendo no jornal. Mesmo sendo republicano, depois ele não limparia a bunda com as folhas do periódico, uma vez que concordava com algumas coisas que estavam ditas ali e preferia sempre papel higiênico suave e com folhas duplas. Sim, ele fora um daqueles agentes, mas fizera tudo por dinheiro, não por ideologia. Pelo menos era o que dizia...
Brian Mahoney, mercenário ianque aposentado, durante mais de vinte anos participara ativamente de várias tentativas de convencimento (e põe convencimento nisso) de povos hostis aos empreendimentos comerciais de seu país no exterior. E de outros negócios escusos também. Mas já fazia algum tempo que tinha largado essa vida, uns quatro anos mais ou menos. E era viúvo recente: fazia pouco mais de um ano que a esposa Catherine viajara fora do combinado, como diria um apresentador de televisão desconhecido do casal.
Fred, o filho único, que andava muitas vezes com a cabeça pelos ares, mas atualmente estava com os pés no México, raramente telefonava e nunca aparecia para visitá-lo, nem mesmo para pedir dinheiro emprestado. Não se davam muito bem, pouco se falavam. Tinham se avistado no enterro de Catherine e trocado um ou dois telefonemas comerciais depois disso. O pai ignorava que ele viajava pelo exterior atualmente. Nem mesmo vira o filme que o filho dirigira recentemente, antes de viajar.
Mahoney vivia sozinho, gozando de suas benesses em Carmel-by-the-Sea, ou simplesmente Carmel, pequena cidade da península de Monterrey, na Califórnia. Era a cidadezinha onde o caubói Clint Eastwood fora prefeito durante os anos de 1986 a 1988. Na década de 1980 Mahoney não morava ali, mas na costa oeste da Flórida, em Tampa, sua cidade natal. E por volta de 1985, 1986, se encontrava no enluarado estado de Vermont. Em estado físico e mental para lá de enluarado, deplorável. Hoje não mais.
Hoje, completamente alheio às aventuras internacionais do filho e a outras tantas que ocorriam no mundo de ficção, confortavelmente instalado em sua poltrona preferida, ele preferia ouvir música da boa a ler jornais ruins. Esse que costumeiramente lia considerava mediano.
Jornal dobrado e guardado, então curtia sua happy hour solitária na penumbra da sala de estar da bela casa cenográfica em que vivia. Stan Getz e músicos tocavam e João Gilberto (ao violão) cantava Vivo Sonhando. Oitava e última faixa do lendário álbum Getz/Gilberto, ganhador de vários prêmios Grammy. Seis músicas de Antonio Carlos Jobim, o próprio ao piano. Um clássico lascado e polido da idade de ouro da bossa nova, para alguns. Ou um ótimo exemplar da fusão de dois mundos musicais, o jazz do norte e a bossa do sul, para outros. Ou ainda, um marco da música popular internacional, para muitos. Ele, que adorava o disco, achava que todos tinham razão, que somente uma opinião a favor era muito pouco.
Mahoney absorveu mais um gole de uísque e todos os sons em volta. Absorveu demais, até o disco silenciar e o copo secar. Então levantou-se, acendeu um pequeno abajur e trocou o disco: ouviria Chet Baker agora. Pela milésima vez, talvez. Preparou outro drinque enquanto os sons iniciais de My Funny Valentine se espalhavam suavemente pelo ambiente.
Depois voltou à poltrona, cantarolando com letra própria: “Minha pequena Catherine / Hoje vou ver outra vez nosso filme...” Sentou-se e por um instante ficou completamente imóvel, pensando em nada a não ser nela. Seu pensamento ficou ziguezagueando pelo azul, um azul que se não era do céu, tampouco era do mar, um azul pintado de azul, talvez um azul-modugno. Depois bebericou novamente seu malte e fechou os olhos. Reteve a bebida entre a língua e o céu da boca por alguns segundos, e em seguida engoliu: delícia!
Recostou a cabeça na poltrona e prestou mais atenção na canção: beleza! O amor era um sentimento belo demais, especialmente depois de vários drinques. Na música, no cinema, na literatura, o amor era mais que belo, era maravilhoso, uma coisa esplendorosa (“O amor é uma coisa esplendorosa”, como dizia a letra de outra canção). Pois era amor sem mau hálito, sem dor de cabeça, sem flatulência, sem unha encravada. Porque era a vida simplificada, onde os problemas duravam a duração de um filme, de uma canção. Naquele momento, para ele, o mundo artístico todo era maravilhoso. E sorveu-o de um gole só.
O poeta é fingidor, a arte é um artifício, não é a vida, mas qual o problema? Afinal, como disse o mesmo poeta, a realidade é sempre mais ou menos, muito menos do que queremos, não? Somente a arte torna a vida suportável; somente através dela é possível encontrar o tempo perdido de que Proust falava em sua busca... Mahoney achava agora que tinha perdido muito tempo na vida. E algumas coisas não voltavam mais, estavam perdidas para sempre, infelizmente. Tudo por ganância, aventura, emoções fortes...
Tolice achar que a boa vida se encontrava fundamentalmente nas viagens, nas praias, nos shoppings, nas ruas das grandes cidades (a vida perigosa, bandida, estava aí sim), que a vida (plena de significados, inteligente, prazerosa) pudesse estar fora dali, da morada, dos discos, livros, filmes, das boas lembranças, da memória, enfim. Ultimamente o ex-mercenário vinha acreditando que essas coisas todas significavam muito mais para ele do que certas pessoas que conhecia e lugares onde havia estado.
Preferia ficar em casa (ou próximo dela) a enfrentar novamente o mundo usando as perigosas habilidades que desenvolvera (e que agora se encontravam aposentadas também). E tinha escolhido a bela e acolhedora Carmel para viver até o dia em que a morte viesse buscá-lo e o carregasse para as profundezas do inferno. Ele sabia que tinha um lugar reservado lá.
Pois é; justamente ele que tinha rodado o mundo em várias missões, com seus companheiros de trabalho (sujo), depois da morte da mulher vinha pensando muito assim. Não em morrer logo, ir para o inferno, mas levar o resto da vida longe de problemas e encrencas, tão calmamente quanto fosse possível. Em paz. E a bebida ajudava muito nisso, pois quase sempre se encontrava alegre e não tinha com quem discutir ou brigar. Raramente saía de casa agora, somente o necessário.
O mundo todo (que lhe interessava) estava ali. Quando num momento mais longo de sobriedade se descuidava um pouco e deixava aflorar no pensamento uma pequena, minúscula vontade de viajar, logo corria para pegar seu belo exemplar de Atlas geográfico, um dos últimos presentes da mulher, abria-o e ficava viajando com o dedo indicador e as lembranças. Ah, Amsterdã e o bairro da luz vermelha!
Justamente em Amsterdã é que Chet Baker tinha morrido fazia tempo, em 1988. Mas continuava extremamente vivo através de sua música imortal. Quando ouviu a segunda canção do disco, Someone To Watch Over Me, Mahoney pareceu sentir a presença etérea de Catherine com mais intensidade, se isso era possível. Era. Isso sempre acontecia quando ele queria. Chet Baker, sua música, proporcionavam-lhe momentos como esse. E não apenas Chet.
Até tempos atrás ele nem apreciava tanto assim a música de certos jazzistas, como vinha ocorrendo mais intensamente ultimamente. O jazz parecia moderno demais para servir de trilha sonora para o tipo de coisa (antiga demais) que fazia: matar gente, derrubar governos, sufocar rebeldes, extinguir revoluções no nascedouro. Preferia então ouvir Ray Conniff e seus cantores patriotas e republicanos. Sim!
Quando jovem, na década de 1970, gostava mais de música erudita e de apenas umas poucas orquestras e cantores populares. Mas nos últimos anos vinha ouvindo muito mais jazz e gêneros assemelhados do que peças clássicas. Porém, não tinha mudado completamente seu gosto em tudo: ainda estremecia de prazer ao ouvir A Cavalgada das Valquírias, de Richard Wagner, usada como trilha sonora naquela fabulosa cena de Apocalypse Now, em que soldados americanos, em seus helicópteros, metralhavam um maldito vilarejo vietnamita. Como ele podia permanecer indiferente àquilo? Seu sangue fervia! Aquele era o filme de sua vida! Francis Ford Coppola tinha realizado no cinema o que ele gostaria de ter feito de verdade: um filme de guerra clássico! E com música da melhor qualidade. Animalesca!
Porque enquanto ele matava asiáticos, latinos e africanos de verdade, a trilha sonora era completamente outra, ora composta de longos silêncios na espreita do inimigo (a maior parte do tempo), ora mortífera, sangrenta, explosiva e lancinante! No longo período dos anos de 1980 (mas que na verdade foram apenas cerca de sete meses) em que passou em Montpelier, longe dos familiares, colegas de trabalho e amigos - hospitalizado para recuperar-se de um ferimento na cabeça, e logo depois internado numa clínica psiquiátrica para tratar de uma loucura que o acometeu durante uns tempos, tudo resultado de um trabalho mercenário e sanguinário na África, o mais terrível em que se envolvera -, não via filmes violentos, ouvia apenas música suave, lia livros amenos, via programas de televisão inofensivos. Tudo era controlado pelos médicos então. Nem mesmo uma inofensiva bomba recheada de creme lhe era permitido saborear como sobremesa.
Hoje podia ouvir Wagner sempre que desejasse, mas naquele tempo lhe proibiram canções como Batendo na Porta do Céu, e até mesmo uma tolice italiana chamada Era um Rapaz que Como eu Amava os Beatles e os Rolling Stones, pois havia o rataplã dos tambores e o ratatatá das metralhadoras...
Já fazia mais de duas décadas que podia ouvir música ligeira sem que lhe viesse vontade de sair por aí matando sujeitos de pele morena ou de olhos puxados, mais ou menos como Michael Douglas fizera no filme Um Dia de Fúria. Tanto que, logo depois de deixar a clínica, se casara com Catherine Díaz, uma enfermeira de Vermont que cuidara dele, jovem norte-americana, mas neta de equatorianos, de cabelos e olhos escuros. Que logo lhe dera Fred, um maravilhoso bebê de pele morena clara, cabelos castanhos e intensos olhos azuis. Mas que depois, mais velho, se tornara um adolescente rebelde. “Rebelde sim; não um mercenário sanguinário!” Quantas vezes o adolescente transviado lhe atirara isso na cara!
De volta aos clássicos - pois quando pensava na mulher ficava tristonho e saudoso demais por sua ausência, e quando pensava no filho sentia não exatamente saudade ou nostalgia, mas outra coisa -, fora justamente a partir dos compositores clássicos que tinha chegado ao jazz. Bem antes de chegar ao jazz e depois de recuperado física e emocionalmente, casado e com um filho para criar, passou a aceitar trabalhos em que o risco envolvido fosse consideravelmente menor do que aquele das missões anteriores. Envolvia-se com o planejamento da ação, acompanhava os demais “soldados” ao país em que seria executada, portava suas armas e munição, mas agia na retaguarda, dando suporte para os homens que efetivamente participavam do embate ou combate.
Assim foi até a última missão, na Colômbia, alguns anos passados. Contratado por uma agência americana que trabalhava secretamente para o governo Uribe, o grupo de mercenários do qual fazia parte prendeu e matou uma dezena de guerrilheiros das FARCs e alguns de seus parceiros sul-americanos, todos traficantes de drogas. A operação deu-se na floresta amazônica, na fronteira com a Bolívia que, junto com a Venezuela eram acusadas pelo governo Bush de dar abrigo a guerrilheiros narcotraficantes.
Ele participou da logística da operação, não matou ninguém, não levou nenhum tiro, nem ninguém de seu grupo saiu muito ferido. Estava mais ou menos seguro num helicóptero. Contaram com a valiosa ajuda de um guerrilheiro (ou terrorista) colombiano em processo de deserção, que estava deixando a organização por acreditar que ela tinha se desviado consideravelmente de seus objetivos iniciais, revolucionários. Que nada tinham a ver com o tráfico de drogas e o sequestro de pessoas. Mas nem por isso o arrependido deixou de aceitar sua parte em dólares.
Como a missão colombiana era secreta, bem mais que isso, secretíssima, por contar com ajuda externa, nenhum dos estrangeiros envolvidos na ação em solo - e até mesmo alguns militares colombianos - ficou sabendo em detalhes o que havia sido negociado então pelas autoridades de Bogotá e Washington. Nem do que se passou com os guerrilheiros que foram capturados na ação. Porque os mortos estavam mortos mesmo e seus corpos seriam recolhidos pelos militares do país, como se a ação tivesse sido executada exclusivamente por eles.
Após esse trabalho, já aposentado, Mahoney passou a se interessar mais por jazz. Cada vez mais. Agora apreciava o gênero intensamente. Não somente por causa da técnica dos músicos, mas pela emoção que transmitiam e pela liberdade de improvisação que o jazz permitia, ao contrário da música erudita. E um único músico de jazz podia emocioná-lo tanto quanto uma orquestra inteira - referia-se a John Surman (seria mesmo um jazzista; e se não fosse, importava?) executando dele mesmo a belíssima Portrait of a Romantic. E um clássico, Canon in D major, de Pachelbel, executado sob a influência do jazz, podia levá-lo às nuvens, como lhe acontecia toda vez que ouvia o Jacques Loussier Trio executá-lo. Tudo sempre acompanhado de um belo drinque, fundamental para atingir aquele estado etéreo (ou etílico) que parecia trazer-lhe a mulher de volta.
E chegara a Loussier e Surman por desvios, depois de ter passado por Chet Baker, Miles Davis (não tinha sido muito fácil passar por ele), Gerry Mulligan, Dave Brubeck, Stan Getz... E a esses depois de ter passado também pelos pioneiros (Django Reinhardt, Louis Armstrong e outros antigos artistas de seu novo olimpo musical). Foi justamente com Stan Getz que Mahoney tomou um atalho para a bossa nova, a maravilhosa música do Brasil. Que para ele passava pouco mais do que uma republiqueta das bananas. Dos bananas, também, exceto seus músicos...
O contato inicial de Brian Mahoney com a música brasileira, mais especialmente com a bossa nova, ocorreu através do consagrado disco Getz/Gilberto; esse que vinha ouvindo até demais ultimamente. Através de Stan Getz tomara um atalho para a bossa nova de Antonio Carlos Jobim e João Gilberto, principalmente, mas também de Sérgio Mendes. Na Califórnia (não morava no estado na época) a bossa nova tinha chegado com força nos anos de 1960; muitos passaram a apreciar Sérgio Mendes e a batida brasileira. Inclusive músicos de jazz, que a absorveram e a incorporaram desde logo, e não apenas os músicos da costa oeste.
Mahoney também andara lendo sobre música, tinha muito tempo livre, não bebia o tempo todo, claro. Admirava o modo como os jazzistas (especialmente quando tocavam ao vivo) desconstruíam as canções através da improvisação inspirada (entremeando politonalidades, contrapontos, fugas etc.) a ponto de oferecer para o ouvinte quase que uma nova música a cada apresentação. Por outro lado, os músicos da bossa nova tinham o potencial de construir uma canção por sua artística capacidade de dizer muito com muito pouco (um banquinho, um violão), quase nada (mas que nada!), tornando-a única e reconhecível em qualquer parte do mundo (musical conhecido).
E mais: que João Gilberto podia combinar as duas coisas, desconstrução e construção (palavra por palavra, numa performance mágica), em qualquer canção que escolhesse cantar (ou dizer?), mostrando sempre um frescor de interpretação inédito. Complicado? Mahoney sabia o que estava pensando, embora não soubesse, por exemplo, colocar isso num papel com a necessária clareza para se fazer entender, mesmo porque acreditava que a melhor coisa em música era ouvir e sentir, não explicar ou racionalizar, tarefa para os críticos. Ele não passava de um simples ouvinte em busca de prazeres musicais maiores. Importava que tanto os jazzistas quanto os bossa-novistas faziam-no viajar na música - isso ele sentia; disso tinha certeza.
Mais do que a genialidade de composição e a interpretação de Tom Jobim, João Gilberto deixou-o nocauteado, maravilhado, quando ouviu o Getz/Gilberto pela primeira vez. Se João lesse um cardápio de restaurante francês do mesmo modo como cantava, seria música para seus ouvidos. Mas, da mesma forma, se João lesse uma bula de remédio seria simplesmente uma bula de remédio. E música era remédio para a solidão de Mahoney. Como tinha sido parcialmente responsável por sua cura, lá atrás, na clínica de Montpelier (ah, o luar de Vermont e a jovem Catherine!) Depois, João sozinho e seu violão. “Melhor do que o silêncio só mesmo João”, conforme cantava Caetano Veloso. De quem não gostava de tudo, apenas de algumas canções...
Tornara-se cativo de João embora não confessasse isso a seus poucos amigos mercenários da reserva, para os quais não ficava nada bem tornar-se cativo de qualquer coisa ou pessoa, que isso era lá coisa do Pequeno Príncipe, coisa de miss, se não de uma ação mal executada. Gostava de João Gilberto apesar de não entender quase nada da língua brasileira (portuguesa), talvez por isso mesmo. Talvez tivesse sido o jeito de cantar, a batida do violão (ele não conhecia a batida de limão; se conhecesse gostaria ainda mais da música brasileira, certamente), que o cativara. Com a mesma intensidade que Ray Conniff o capturara no passado, como uma droga - porém lícita.
Muito estranho ele gostar dos dois, reconhecia; mas tinha acontecido. Hoje detestava o som de Ray Conniff. Ele gostava de pensar assim, embora isso não fosse totalmente verdadeiro. No início de suas missões também tinha gostado de matar, tinha acontecido... Felizmente, ainda que meio tarde, também tinha acontecido gostar de Sarah Vaughan, Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, Nat King Cole, Billie Holiday. Jaziam todos eles; viviam na atemporalidade musical, porém.
E foi divagando, de músico em músico, que terminou quase se lembrando de uma história que ouvira há algum tempo, sobre um respeitado músico de jazz que jazera numa daquelas cidades jazzísticas do sul do país. Uma história que por conta de fatores subjetivos, da memória enevoada e dos muitos drinques que vieram depois, foi sendo modificada, tornando-se quase totalmente irreconhecível em relação à primeira versão cantada, da qual restava apenas um fiapo de música hoje.
Era uma história surgida depois da passagem de um furacão pelo clube de jazz onde o músico tocava. Com tanta violência que o clube e a área em torno desapareceram do mapa. E o músico também. Ele se chamava Ray Armstrong – disso Mahoney se lembrava de vez em quando. Mas agora, antes que pudesse se lembrar da história toda já estava mais tomado pelo sono do que acordado.
Dormindo ou acordado tinha uma coisa que ele não entendia: nunca conseguira encontrar um único álbum solo de Ray Armstrong em qualquer loja de discos e nem nos catálogos musicais que recebia pelo correio. O jazzista era um artista completamente desconhecido para muita gente desconhecida. Era estranho que somente fizesse participações especiais nas apresentações e nos discos dos outros. Ainda chegaria o dia em que algum vendedor mais atencioso e informado diria a Mahoney (ou ele descobriria por si próprio) que discos de Ray Armstrong sempre estiveram fora de catálogo. Pelo simples fato de que nunca estiveram dentro de qualquer catálogo, em tempo algum.
Mas esta era, como todas as anteriores, uma informação completamente idiota para a barata esfomeada que circulava no escuro da limpa e planejadíssima cozinha de Mahoney. Ela viera em busca de restos de comida, claro. Chegara ali pelo ralo do banheiro da área de serviço, tomara um desvio. E não estava nem um pouco impressionada com os sons que vinham da sala. Para dizer a verdade, estava se lixando para aquele tipo de música esnobe. Se para o sofisticado Antonio Carlos Jobim fundamental era mesmo o amor, para ela, que era do tipo bastante popular, Periplaneta americana, comida era o primordial.
O mundo era maravilhoso somente quando não faltava comida. E também quando não havia nenhum chinelo, vassoura ou inseticida por perto, é certo. Nenhum escorpião também, predador natural das baratas. Era isso, então: depois de bem alimentada, encontrar um ninho, um lugar escuro e seguro para descansar, o desejo maior da baratinha comilona agora. Sem som de jazz ou bossa nova pra encher o saco...