A fazenda de Felix
— Crianças, está na hora de desligar o televisor!
— Mamãe, só um pouquinho, está quase acabando o desenho...
O almoço estava servido.
Madalena foi chamar o marido.
Alberto encontrava-se abaixado, quase deitado próximo à traseira do trator desativado.
Chamou a esposa com carinho. Ela aproximou-se e sorriram juntos. Trocando um beijo pelo ar.
Pouco acima do para-choque, no vão guardado por ferrugem e lama seca, um ninho de ratos era o motivo do sorriso do casal. Havia três minúsculos animais. Pare-ciam todos mortos, contudo, um apresentou-se bem vivo. Vulnerável, porém com ímpeto de defesa. Os outros dois haviam expirado.
Alberto apanhou o sobrevivente e dirigiu-se ao grande latão de lixo, que ficava antes da entrada do gal-pão das ovelhas. Madalena questionou o que o marido iria fazer.
— Matá-lo, claro. Isto é uma praga!
Ponderou Alberto.
— Nem quero ver.
Finalizou a esposa, cobrindo os olhos com as mãos e pedindo uma intervenção divina.
Pronto para executar o indesejado animal, Alberto foi interrompido pelos filhos, que a pouco haviam se aproximado.
— Não papai, coitado do pobrezinho. Não o mate, por favor.
Era tarde demais. Alberto havia o sufocado com sua bota enxovalhada de lama vermelha. As crianças cho-raram. O pai ficara consternado e ponderou sobre os peri-gos que o animal poderia trazer. O malefício à saúde de todos, os transtornos que a infestação acarretaria.
Não esqueceu sequer do flautista mágico e de sua façanha ao livrar uma cidade dos ratos...
— Vocês sabem sobre o flautista mágico?
Questionou o pai.
Ouviu um não como resposta.
— Bem vou lhes contar... Era uma vez...
A história agradou, mas não conseguiu acalentar os filhos. Prometera um filhote de gato, quando fossem à feira, na semana seguinte. Os semblantes chorosos, os olhos brilhantes e pedintes, magoaram o pai. Alberto su-cumbiu frente aos prantos. Retirou com cuidado a bota pesada de cima do animal, torcendo para que estivesse vivo. Alguma força, divina, deixou que o animal vivesse.
— A facto ad jus non da tur consequentia .
Sussurrou Alberto, com ares de juiz.
— Ele pode ficar... com algumas condições.
As crianças sorriram. A esposa obteve um alívio que ousara desejar.
— Não quero vê-lo em casa. Não o deixem fugir. Alimente-o uma vez por dia. Não toquem nele, em hipó-tese alguma. Por último, mas não menos importante, ele tem de viver só. Não pode, de modo algum, ter um ami-go, nem tampouco uma amiga. Somente desse modo ele poderá ficar.
Sinceramente não se sabe como Alberto tinha ci-ência de que o animal era um macho da espécie. Mas a certeza que se tem é de que ele sabia. Talvez pelo tama-nho, pelagem, ou outra particularidade.
Acomodaram o pequeno rato em uma gaiola e fo-ram almoçar.
À tarde, após as crianças retornarem da escola, abandoaram as mochilas e foram logo ao galpão das ove-lhas, onde havia ficado a gaiola com o novo morador. Sentaram-se próximas à gaiola e iniciaram uma votação pelo nome que iriam dar ao ratinho. Como sabiam que era um menino, cogitaram logo o nome do mais famoso entre eles: Mickey. Joaquina não gostou depois que o irmão consentiu. Pensaram em outros vários... Fred, Tião, Carli-to, Pelé... Nada os agradou.
A mãe os chamou. Pensariam após o jantar.
Pouco antes de levantarem da mesa, falaram sobre o nome do rato. Alberto entrou na brincadeira e sugeriu Felix.
— Este não papai, Felix é um gato.
Retrucou João...
Amenizara, o pai...
— Por isso é legal. Os gatos o respeitarão desse modo. Terá nome de gato. Queriam Mickey? Seria devo-rado logo.
— Felix, então!
Comemorou Joaquina, soltando um gritinho fino e irritante, mas carregado de ternura.
Na manhã seguinte, Joaquina e João acordaram cedo e logo foram ao galpão das ovelhas. O ratinho esta-va encolhido em um canto da gaiola. Tão imperceptível que Joaquina pensou que havia escapado. Foi uma manhã de cuidados especiais. Forraram a gaiola com jornais ve-lhos, colocaram um bebedouro, improvisaram uma vasilha para lhe servir a comida e lhe ofereceram a primeira refei-ção. Restos de comida que haviam guardado da janta. Tinha uns pedaços de batata, alguns grãos de arroz, e um generoso pedaço de carne de ovelha assada.
Alberto pendurou a gaiola em um poste logo na entrada do galpão, protegido da chuva e do sol. Sobre a portinhola da gaiola, fixaram uma plaquinha com o nome Felix, em letras azuis.
Felix já estava adaptado ao ambiente de cuidados e mordomias. Porém, a natureza sempre fala mais alto, e em uma noite de tempestade a frágil morada de Felix foi ao chão e abriu-se, deixando que seu morador escapasse, trazendo tristeza às duas crianças e, quiçá, alegria ao pai atento.
O animal percorreu longo trajeto para escapar do galpão e do alvoroço causado pelas ovelhas. Encontrou guarida em uma velha estufa abandonada. Lá voltou a ser um rato. Misturou-se aos seus e proliferou-se tal qual os seus.
Pouco tempo se passara desde a fuga de Felix. As crianças ganharam um cão, que chamaram de Rex. Esta-vam felizes. Não lembravam mais de seu ratinho de esti-mação.
No inverno, alguns meses depois da colheita, com a produção estocada, o rebanho vendido e a lã encomen-dada, a propriedade em que se encontrava a estufa aban-donada fora vendida, e o terreno limpo, expulsando a colônia de ratos que ali residia. Como não havia mais es-conderijos no terreno, o destino dos ratos não poderia ser diferente. Como parecia mais cômodo e farto, instalaram-se todos no galpão das ovelhas.
Nas frestas das paredes, nos assoalhos, no depósi-to de ração, enfim, cada vão tornou-se morada, e o que era servido às ovelhas, tornou-se alimento para eles tam-bém.
Não demorou muito para que os cem ratos se tor-nassem duzentos, e que estes duzentos se fizessem qui-nhentos, e, não obstante, os quinhentos formassem um exército de mil ratos...
Os porcos adoeceram; e com a escassez da ração, que após a invasão passou a ser guardada na casa da fa-mília, os ratos tomaram conta do lar, e se espalhavam aos montes por todos os lugares. Atacavam a dispensa, roíam colchões, roupas, móveis e tudo que encontravam pelo caminho. Cada dia que se passava um porco amanhecia com feridas pelo corpo, pois a fome voraz dos ratos não era mais saciada. Infectados por leptospirose e outros males acarretados pela infestação, os porcos passaram a morrer rapidamente, eliminando a produção de carne e derivados, levando Alberto à falência.
A família passou a se esconder em casa, haja visto que a comunidade de roedores era algo jamais ocorrido. Rex morrera por beber água com dejetos dos ratos. Pedi-ram ajuda, mas não havia quem controlasse aquele pan-demônio criado pelos animais. As crianças eram guarda-das pelo pai e pela mãe, que vigiavam seu sono e os ali-mentavam. Apenas o casal se mantinha de pé, para de-fender o que restava.
A voracidade dos ratos tomou proporções exorbi-tantes, e na fome sem fim, com todas as ovelhas pade-cendo, as rações devoradas, a dispensa da casa vazia, o horror fez morada na fazenda, ao ponto de os ratos co-meçarem a devorar-se uns aos outros, exterminando aos poucos a colônia. De todo o canto eles surgiam. Não ha-via uma pedra que fosse removida, que um rato não emergisse; brotavam do chão como erva daninha e ao passo que surgiam, às dezenas eram mortos pelos seus. Era algo inimaginável. A natureza mostrou toda a sua ira, toda a sua desgraça, toda a sua regeneração.
O verão chegara, e a devastação na fazenda da família se apresentou irreversível. O galpão estava ao chão. A casa estava destruída, com buracos em todas as partes. As cocheiras dos cavalos, inutilizadas. A planta-ção de milho perdida, a horta devorada. Nem mesmo as cercas sobraram. Por toda a extensão da propriedade ha-via ratos mortos espalhados pelo chão, exalando um odor insuportável.
João, frágil e debilitado, sucumbiu frente ao hor-ror. A família chorou as lágrimas que não tinha para cho-rar. Enterraram o filho fora dos limites da propriedade, longe do chão pútrido da desolada fazenda.
Não tinham para onde ir. O chão estava contami-nado e a reputação do lugar desgraçada. Frente à tragé-dia, a família permanecia sem forças, sem ilusões de res-suscitar a propriedade que tão cara lhes custou.
Sem mais provisões, abandonaram tudo e foram embora; deixando para trás o filho, os sonhos e a realida-de.
Há quem diga, que nos dias mais frios e cinzas do inverno, um roedor, com pelos escassos em tons de cinza e branco, muito pesado e vagaroso, desprovido da cauda e deveras cauteloso, carrega restos de comida para o tú-mulo de João, afastado da fazenda de Felix.