As desinvenções
O atendente da agência de empregos atende, sem pressa, um candidato que busca emprego: O senhor tem experiência em que área, quero dizer, qual é sua especialidade?
Antes de responder o homem olha para um lado, depois para o outro, como se estivesse esperando alguém ou que algo acontecesse, mas em seguida diz: “Sou desinventor: desinvento coisas.”
Surpreso, o atendente retruca: Mas isso não existe!
“Existe sim.", diz o outro. E prossegue: "Quer um exemplo? Desinventei a mulher, cujo modelo vem desde os tempos bíblicos, e meu pai inventou a boneca inflável para susbstituí-la, uma coisa bem moderna. Satisfeito?”
Senhor: não tenho boneca inflável em casa, portanto não posso responder à sua pergunta, se estou satisfeito ou não com ela.
“Não, meu senhor! Perguntei se estava satisfeito com o exemplo.”
Ah, muito bom, muito bem. Quando a gente fica cheio da mulher de borracha é só furar com uma agulha que ela desaparece da nossa vida, não é assim? Já se livrar de uma mulher de verdade é bastante complicado e caro. Aprovei sua desinvenção. Poderia citar outro exemplo?
“Claro! Eu e meu pai somos especialistas nisso: temos dezenas de desinvenções e invenções. Outra de nossa lavra: restaurante de comida por quilo, invenção nossa criada a partir da desinvenção do restaurante tradicional. Gostou?”
Gosto muito do preço da comida por quilo, além da variedade, mas penso que a servida num restaurante é sempre melhor, embora bem mais cara. Então alguns dias da semana como comida por quilo, noutros vou a um restaurante tradicional. Assim meus gastos ficam equilibrados.
“Muito bem! Então o senhor está vendo que o trabalho de desinventor é uma coisa importante, não? Houvessem mais desinventores nosso país seria um dos mais desenvolvidos do mundo. Se não isso, ao menos nossa população teria melhores serviços com preços decentes, seria muito mais feliz.”
Taí uma coisa que você e seu pai poderiam fazer: você desinventa a infelicidade e seu pai inventa a felicidade plena. Que tal?
“Impossível: nosso povo gosta de ser infeliz, assiste a quatro ou cinco novelas por dia, todas são dramas, nenhuma é comédia, portanto, gosta mais de ficar triste e chorar do que ser alegre e rir. Se a gente mexer com isso seremos fatalmente presos ou até mesmo expulsos do país, sabia?”
É mesmo? Eu desconhecia isso, porém permita que eu discorde de sua colocação. Se fosse como o senhor fala, as comédias stand up não fariam tanto sucesso, os teatros ficam sempre lotados, o público aprecia os comediantes, eu poderia citar uma dezena deles que ficaram famosos.
“Sabe que acho que o senhor tem razão nesse ponto? Não queria dar meu braço a torcer, mas tenho de confessar: nessa eu e meu pai bobeamos, não agimos a tempo. Eu poderia ter desinventado a comédia tradicional e meu pai inventava a comédia stand up. Pisamos na jaca nessa aí...”
Para sua informação, a comédia stand up surgiu nos EUA já no final do século XIX e, a seu modo, até mesmo o escritor Mark Twain participou de seus inícios, sabia? Mas ganhou fama foi mesmo nos anos 1970, com gente como Woody Allen, Shelley Berman, Redd Foxx e Bill Cosby entre outros. Antes deles teve o Lenny Brice, que fez enorme sucesso nos anos 1950, 1960...
“Acho melhor o senhor parar por aí, porque se continuar a me humilhar assim com tanta informação, vai minar minha autoestima e ainda por cima, arruinar minha profissão, diminuir enormemente meu ânimo para desinventar coisas e pessoas.”
Desculpe! Não sabia que o senhor era tão sensível. Mas não fique triste nem preocupado, porque se o senhor não me cobrar nada eu gostaria de ser desinventado: não gosto do que faço, ficar aqui o dia todo atendendo as pessoas que buscam emprego.
“Como o senhor me pareceu educado e gentil, não vou lhe cobrar nada. E o que o senhor gostaria de fazer, para que eu possa desinventá-lo devidamente?”
Gostaria de ser um comediante stand up, contar anedotas, lotar teatros e ficar rico. É possível?
“Claro que é! Então vou deseinventá-lo de atendente e depois meu pai irá transformá-lo em comediante, tudo bem?
Tudo ótimo! Mas cadê seu pai, pois me parece que o senhor veio aqui sozinho, não?
“Não se preocupe que ele irá chegar em breve, deve ter tido alguma dificuldade com o muro... quero dizer, com o metrô. Então lá vai: aproxime-se um pouco mais que vou jogar um pouco de pó de pirlimpimpim para produzir a magia da desinvenção.”
O desinventor joga alguma coisa no atendente, mas que não produz efeito algum nele, a não ser alguma coceira. Ele reclama:
Ei, está coçando isso aqui! E pergunto novamente: cadê seu pai, para operar a invenção depois?
“Poxa, acho que o velho não conseguiu pular o muro do hospício a tempo. Combinamos de nos encontrar aqui e de fato ele está bastante atrasado, pelo jeito não virá mesmo. Deve ter sido pego pelos enfermeiros, quem sabe?”
Espere aí! Que história é essa de pular o muro? Se seu pai está internado num hospício, me parece que o senhor também não bate lá muito bem das ideias, não é? Tanto que continuo atendente, só que agora com uma tremenda coceira pelo corpo todo. O que se passa?
“Passa-se uma pomada milagrosa para acabar com essa coceira. Agora, é verdade sim, puxei meu pai, só que mesmo maluco eu pularia o muro do hospício com muita facilidade e rapidez; sou rápido feito vampiro fugindo de réstia de alho. Coisa que ele deixou de ser, pelo jeito, senão já estaria aqui pra rirmos juntos do senhor, ah, ah, ah, ah...”
E o atendente se coçando todo, ficando cada vez mais raivoso e vermelho:
Pomada milagrosa, vampiro, hospício... Vou é chamar a polícia para prendê-lo, isso sim, porque o senhor é um perigo para a sociedade. Ai, ai, ai, esta coceira está me deixando louco!
“Está ficando louco, é mesmo? Bem que notei desde o início que o senhor fazia parte da turma, só precisava de um empurrãozinho. Então, seja bem-vindo ao clube dos desinventores, colega!”
Socorro!
(Fecham-se as cortinas e termina o desespetáculo sob uma forte chuva de vaias.)