Coleção de gavetas (miniconto- uma metáfora)

Você já parou para pensar que colecionamos gavetas ao longo da vida?

Na infância, nossa coleção de gavetas guarda coisinhas miúdas, assim como a gente. O brinquedo preferido para durar mais tempo ou aquele que não gostou e prefere esquecê-lo. O restinho do lanche preferido para mais tarde e às vezes uma pequena mágoa de chateação por alguma bronca pela teimosia, a recusa pelas trancinhas que sua mãe decidiu que facilitaria a vida, etc.

Com o passar dos anos, as gavetas vão ficando mais pesadas, o número também vai aumentando, quanto mais você cresce, de mais gavetas necessita.

Na adolescência, nossas gavetas ficam cheias de segredos, curiosidades e dúvidas. Ah! Temos uma só para os monstros. Se tem uma fase da vida para criar monstros, é na adolescência. Fase da vida que passamos maior parte do tempo protegendo as nossas gavetas. Tem alguns guardados, para não dizer escondidos, ali, que jamais poderão ser reveladas.

Na gaveta dos segredos, possui alguns, como a primeira palpitação no coração por um garoto ou garota, que até é dividido com melhores amigos. Ah, os melhores amigos ficam guardados na gaveta de coisas boas, esta nunca fica fechada, estamos sempre nos declarando um para o outro, também nos reunimos para abrirmos juntos nossas gavetas de segredos. Já a gaveta de dúvidas, esta acaba ficando anos bem trancada, acumulamos muitas dúvidas, pois, quase nunca um adolescente se sente seguro o suficiente para buscar respostas para todas suas perguntas.

A gaveta de curiosidades as vezes é aberta. Num surto quase que “psicótico” joga-se tudo para fora e numa busca frenética tenta-se desvendar o que está guardado, depois acaba devolvendo tudo e lacrando a gaveta, mas esta é aberta constantemente. A curiosidade é uma virtude.

A pior de todas, é a gaveta dos monstros. Esta jamais poderá ser aberta em público. Quando queremos abri-la, nos trancamos num quarto ou em outro lugar qualquer que nos dar a certeza de que não seremos descobertos. Ali estão bem escondidos os piores monstros. A raiva, as decepções, o medo, pensamentos negativos e outras coisas que não ousamos nem falar. Muitos de nós carregamos esta pesada gaveta muito além da adolescência.

Com o passar dos anos a tendência é que fique mais pesada, mais difícil de ser aberta, de ser revelada ou carregada. Com ferrugem na fechadura ou até mesmo com a chave perdida em algum lugar que não se lembra mais, tamanho foi o cuidado de escondê-la. É comum ouvirmos nos noticiários televisivos, que algum famoso resolveu abrir a sua gaveta de monstros em público, arranca do fundo, já morfados, os maiores e mais assustadores bichos, aqueles que a amedrontou por toda vida. É notável a leveza de suas têmporas ao livrar-se do pesado fardo, do abuso de vulnerável, do bullying em tempos de escola, da violência física em casa etc.

Na nossa gaveta de monstros, sim, todos nós temos uma gaveta dessa, alguns com gavetas menos assustadoras, outros, com gavetas enormes e bem assustadoras.

Além das gavetas, cada um de nós temos uma ampulheta, ali a vida é representada pela areia fina da ampulheta, às vezes, temos tantos monstros para prender na gaveta, que temos vontade de dar uma chocalhada naquela areia para ver se passa mais rápido e nos livramos de uma vez por todas de tudo que nos amedronta. Mas, a verdade é que não conseguimos alterar em nada, ela vai ali, devagar, caindo, caindo, caindo e jogando uma porção de coisas em nossas cabeças, que nem sempre, podemos suportar, então vamos escondendo na gaveta dos monstros.

Um dia, numa atitude desesperadora, toda a areia passa para o outro lado da sua ampulheta num piscar de olhos e leva muitas gavetas que nunca foram abertas e nem reveladas. Quando isso acontece, significa que o dono dessas gavetas tinha uma vida de muito sofrimento, sentindo-se sozinho, sem alternativas, conviveu com monstros assustadores. Estes se transformaram no maior deles, a depressão. O monstro que o fez jogar a sua ampulheta no chão, estraçalhando-a, fazendo a areia evaporar-se no vazio.

É importante que saibamos administrar nossas gavetas, observar se realmente há necessidade de que fiquem trancadas, se precisam ser tão bem-organizadas. É bom que as deixe bagunçadas, sem muitos cuidados, pois gavetas trancadas e bem-organizadas não precisam que abramos para verificar. Regra número um: adquira gavetas. Regra número dois: mantenha as gavetas bagunçadas.

Na fase adulta chegamos com uma infinidade de gavetas. Muitas, sem nenhuma utilidade, outras vazias e muitas transbordando.

Na gaveta de coisas de pouca utilidade colecionamos falsos amigos, paqueras que não evoluíram, regras e modas que não seguimos, uma bronca boba dos pais ou professores, um desentendimento com a/o irmão/ã mais velho e tantas outras coisas insignificantes. Enfiamos na gaveta sem nenhuma utilidade, tudo que sabemos que existem, mas se não existissem não fariam nenhuma falta.

Infelizmente, as gavetas que transbordam, muitos carregam até que toda areia passe para o outro lado da sua ampulheta.

Não há salvação, não existe fórmula e nem receitas para saber a hora de adquirir ou destruir uma gaveta. Elas vão surgindo, nos resta aprender administrá-las da melhor forma possível.

E tem aquelas gavetas que entraram vazias na fase adulta, estas correm o risco de nunca serem ocupadas. Talvez tenham sido reservadas para aqueles sonhos altos demais que você já avalia de cara que nunca serão concretizados. Devemos tomar cuidado com elas. Quanto maior tempo vazias, mais gavetas difíceis de serem abertas vão surgindo, cria-se gavetas para as frustações, para as inseguranças e derrotas etc.

É uma vida inteira criando, abrindo, fechando ou simplesmente fazendo um amontoado de gavetas, esquecidas em algum momento em que a areia passava lentamente de um lado para o outro na ampulheta que lhe foi confiada.

Devemos saber cuidar da nossa coleção de gavetas e reconhecer o tempo, a hora e a necessidade de fazer a limpeza, esvazia-las ou jogar fora para iniciar uma nova coleção.

Quando restar apenas alguns grãos na sua ampulheta, todas suas gavetas deverão estar vazias, sem peso algum, apenas com leveza sustentável do ser.

Regra número três: nunca deixe uma gaveta trancada e esquecida.

Regra número quatro: nunca quebre a sua ampulheta e nem a de ninguém.

De Renilda Viana