Angel, um anjo: lembranças
Abaixo segue o depoimento da estimada irmã de caridade Alejandra Encarnación de Jesus, de Tijuana, México:
Angel era um menino lindo, de olhos azuis, cabelos claros e pele acetinada, nem parecia ser nosso irmão; parecia mais um anjo mesmo. Era bastante diferente do restante da família, não se assemelhava tanto assim a uma criança do bairro da mesma idade. O que se explica pelo fato de que éramos todos filhos da mesma mãe, mas certamente não do mesmo pai, que nenhum de nós jamais conheceu.
Conforme o tempo ia passando Angel ia ficando cada dia mais bonito, atraindo os olhares de todo mundo na vizinhança, o que me dava enorme prazer. Deixei de brincar com minha boneca esfarrapada e passava grande parte do dia brincando com ele. Ele era carinhoso, pouco reclamava ou chorava, parecia sempre feliz, tinha um sorriso luminoso. Ficava sempre aos meus cuidados não apenas porque ele me encantava, também porque éramos muitos irmãos e nossa mãe não conseguia cuidar de todos nós e ainda da casa, o que ela fazia meio aos trancos e barrancos. Sendo a filha mais velha eu tinha mais responsabilidades, mas cuidar de Angel era para mim um presente divino.
Uma vez, quando sobrou algum dinheiro em casa, coisa rara, pude levar Angel à sua primeira matinê de cinema, que espero não tenha sido a última também. Fomos ver desenhos animados de Walt Disney, que ele adorava, que passavam bastante na televisão naquela época e que víamos no nosso velho aparelho de cores desbotadas. Que era também uma espécie de babá do restante dos meus irmãos: ficávamos horas em frente dela, assim minha mãe podia cozinhar, lavar roupa, sair para comprar mantimentos quando tinha dinheiro etc.
Daquela única matinê em que estivemos juntos, me lembro o quanto Angel ficou feliz, curioso com tudo o que era novo para ele, não estranhou tanto assim a sala de exibição, todas aquelas poltronas, a algazarra da criançada antes do início do filme... Comemos um grande saco de pipocas, dividimos também um enorme copo de Coca-Cola de máquina, coisa que ele não apreciou muito, porém. Nem eu: preferíamos refrigerante de latinha ou em garrafa, que eram mais saborosos, e na verdade preferíamos mesmo Pepsi a Coca-Cola.
Foram cerca de 90 minutos de pura diversão para ele e as outras crianças. Eu também me diverti muito naquele domingo: que coisa deliciosa ver seus personagens favoritos numa tela enorme, com cores infinitamente mais nítidas e vibrantes do que as da nossa velha tevê! Angel voltou para casa maravilhado, dizendo que tinha visto Mickey, Pateta, Pato Donald e os outros na “maior televisão do mundo”, que era o que o cinema ficou sendo para ele nos dias seguintes.
Disse, a seu modo, que além de grande, aquele “imenso aparelho” não desbotava, não precisava de controle remoto (que certamente teria quase um metro se existisse, ele pensou) nem tinha anúncios comerciais, o que era ótimo. E ainda perguntou para nossa mãe: “Será que mamãe não poderia comprar uma daquelas tevês como seu presente de aniversário?” Angel faria cinco anos em julho, dali a um mês mais ou menos. Minha mãe nada respondeu, apenas sorriu um pouco; sabíamos que isso jamais seria possível, apenas uma pequena festinha com comida talvez...
Éramos muito pobres, eram os programas governamentais de assistência que permitiam que sobrevivêssemos, assim como havia ainda alguma ajuda da igreja, da escola e de alguns vizinhos com menos filhos e em situação um pouco menos pior do que a nossa... Se não tínhamos nem mesmo um cão ou um gato porque não teríamos como alimentá-los, jamais teríamos dinheiro suficiente para ter uma tevê maior, mais nova, funcionando melhor. Angel teria de se conformar com isso, nós todos, na verdade.
A mãe tinha muitas bocas para alimentar, muitas despesas conosco e com a casa velha em que morávamos, pouco mais do que um barraco, sempre precisando de consertos e reparos, e havia ainda as contas de energia e água para pagar, farmácia, supermercado etc. – ela vivia nos lembrando disso, então muitos de nossos desejos infantis nunca se realizariam. Jamais.
Mas jamais me passou pela cabeça que ela pudesse fazer o que fez alguns dias depois daquela matinê, uma coisa que nunca me permitirá perdoá-la, nem mesmo na hora de sua morte. Vendeu Angel para um casal estrangeiro sem filhos antes mesmo de seu aniversário de cinco anos. E com o dinheiro comprou justamente uma televisão nova, moderna, enorme. Eu quis morrer naquele dia.