FESTA DE ANIVERSÁRIO DO SENHOR DOMINGOS
Texto extraído do livro Duas Vidas - Um só destino de autoria do autor.
Senhor Paulo, depois da compra do V-8 preto, de vez em quando saía com sua família em passeios de finais de semana, ora em alguma cidade vizinha para visitar familiares, ora para participar de alguma festinha em casas de amigos, como na fazenda do senhor Domingos Junqueira, para um simples bate-papo, uma pescaria ou para qualquer outra reunião que fosse convidado.
Em meados do mês de setembro de 1956, senhor Domingos Junqueira resolveu promover um churrasco em sua fazenda para comemorar a passagem de seu aniversário natalício. Estaria completando 55 anos de idade. Senhor Paulo e sua família estavam no rol de seus convidados. Dado a liberdade que Paulo tinha com o senhor Junqueira resolveu convidar, por sua conta própria, o amigo Ildeu para ir junto com eles àquela festa, que iria acontecer no sábado dia 22 de setembro.
Naquele dia Ildeu teve a oportunidade de reencontrar a sua amiga Flor a qual fazia algum tempo que não a via. Acompanhado de Verônica Flor o apresentou a seus pais e depois foram sentar-se em à sombra de uma mangueira longe de onde estava sendo preparado o churrasco por causa do calor e fumaça da churrasqueira de chão. Ali ficaram por um bom tempo conversando em conjunto. Flor, muito amável e bastante extrovertida queria saber tudo sobre os amigos. Sobre seus estudos, seus amigos, seus namoros e tudo que fosse interessante para com eles. Por outro lado também contava as coisas que aconteciam com ela e com seus pais. Contou que depois da ida de seus pais à Europa ela também tinha feito uma turnê por Portugal, Espanha, Itália e França. Havia ficado encantada com as noites de Lisboa saboreando um belo prato de bacalhau ao som do melancólico Fado, com a sensação de paz da cidade Santa de Fátima, com as belezas de Barcelona, com sua fonte luminosa, com as ruínas do Coliseu em Roma e sobretudo com os encantos da cidade Luz. Em Paris havia assistido aos espetáculos do Moulin Rouge e do Lido.
Ficaram ali nada menos que uma hora. Depois de lhes terem servidos um bom prato de churrasco e bem geladas cervejas, que as apreciaram com moderação Flor chamou Ildeu para ir conhecer a casa sede da fazenda. Era realmente uma imponente mansão que o senhor Domingos tinha mandado construir e nela geralmente passava os finais de semana. Naquele momento poucas pessoas se encontravam no interior da casa, pois os seus pais e convidados estavam lá no pomar onde estava sendo realizado o churrasco. Percebia-se apenas a presença de algumas serviçais na cozinha cuidando da limpeza dos talheres que vinham sujos da área da festa. A casa era realmente bastante grande. Nada menos que três amplas salas, cinco quartos com banheiros, sem contar as dependências de serviçais. Pela frente uma varanda bem espaçosa voltada para o nascer do sol e aos fundos outra menor contígua à cozinha de onde se podia se encantar com as plantas do pomar. Além de tudo a casa contava com uma ampla garagem que naquele momento ostentava a presença de uma camionete Studebaker de cor amarela e um automóvel Chevrolet modelo Belair ano 1953, quatro portas, na cor azul com teto branco, uma verdadeira joia. Depois da apresentação da casa, se é que podemos assim dizer, Verônica que acompanhava os amigos foi estar com os seus pais e Ildeu e Flor foram para a varanda da frente que ficava no sentido contrário do local onde se realizava o churrasco e naquele momento já não existia mais sol e soprava uma leve brisa. Iniciaram ali uma boa conversa, partindo de Flor.
- E aí meu amigo Ildeu, o que tem feito de bom?
- Se trabalhar e estudar é coisa boa eu tenho feito muita coisa. Respondeu Ildeu com ar de brincadeira.
- Tudo bem! mas além de trabalhar e estudar o que mais você tem feito? Está namorando alguém? Tem alguém a fim de você?
- Que nada! não estou namorando ninguém. Saí algumas vezes com umas colegas do escritório mais nada sério. A minha preocupação ainda é com os meus estudos e isto tem me afastado das moças. Já percebi, no entanto, que tem alguém que me trata além de amigos, mas eu dentro desta minha obsessão de estudar nunca lhe dei a menor atenção neste sentido. Será que estou errado?
- Coitada desta moça Ildeu! Mas e você vê nela alguma chance de um dia tê-la em seus braços?
- Para ser sincero, amiga, nunca pensei nisto, mas não quero que ela venha sofrer por minha causa, pois é uma grande amiga. E você como está a sua vida amorosa? Namorou alguém na sua viagem pela Europa?
- Pois é Hildebrando! Parece brincadeira, mas até hoje não consegui encontrar ninguém que me possa mostrar o caminho do amor entre duas pessoas de sexos opostos. Já estive com um moço no meu tempo do curso normal, mas com a interferência do meu pai que achava que aquele rapaz não era a pessoa certa para eu me casar e como também não sentia nenhuma atração por ele, acabei com a relação deixando o meu pai pensar que havia feito aquilo em atenção ao seu pedido.
- Mas qual seria a razão do empecilho de seu pai? O moço era pobre?
- Não sei! Era um moço bem apessoado e me dizia que o seu pai era fazendeiro em Mato Grosso onde eles moravam. Ele estudava em Uberlândia onde nos conhecemos. Meu pai esteve com ele um dia mas nem fiquei sabendo o que eles conversaram, mas foi por um longo tempo. Mas você acha que ser pobre é motivo pra que pais não permita que suas filhas case com eles?
- É uma resposta difícil de ser dada. Mas já ouvi muitas histórias sobre isto. O meu irmão mais velho mesmo já passou por coisa semelhante. Eu particularmente, acho isto um absurdo, mas não deixo de ter os meus receios. Imagine se de um dia para o outro você venha a manifestar algum sentimento maior do que a amizade por mim e eu corresponda a este sentimento. É justo o seu pai chegar até mim e dizer: "não quero que você namore a minha filha porque você é pobre".
- Tudo bem! o empecilho que meu pai manifestou naquela oportunidade me pareceu que não tinha nada a ver com isto que você está me colocando! Segundo ele, o motivo principal era em razão do rapaz morar lá no Mato Grosso e não gostaria que eu ao me casar fosse morar longe daqui. Se esta era realmente a sua razão não cheguei a saber, mesmo porque também não dei nenhuma atenção para aquilo. Não sei o que vou passar daqui para frente. Já estou ficando velha e não pretendo morrer solteira. Ao dizer isto para Ildeu, Flor pega nas suas mãos, olha bem nos seus olhos e diz: "preocupa com isto não meu amigo!"
- Não estou preocupado não. Afinal somos apenas amigos e amigos não causam ciúmes em pais obsessivos. Mas naquele momento os dois jovens trocavam olhares comprometedores e percebem que Verônica estava se aproximando deles.
Verônica chegou com uma cerveja nas mãos e um prato de carne com mandioca e sentou-se ali com eles. As conversas entre Flor e Ildeu mudam de rumo e todos voltam a falar sobre a fazenda, sobre a alegria do senhor Domingos com aquela reunião. Falaram até do V-8 Preto do senhor Paulo. Comeram e tomaram a cerveja. Verônica diz para Ildeu que o senhor Paulo estava preocupado com o sumiço dele. Então Ildeu pediu licença das amigas e foi ao encontro do senhor Paulo o qual se achava sentado ao redor de uma mesa com o senhor Domingos e um outro amigo. Percebeu que todos estavam bem alegres e a mesa bem enfeitada com garrafas já vazias. Paulo ao ver Ildeu se aproximando, levantou-se e o levou até onde eles estavam.
- Amigo Domingos! Este moço aqui é como se fosse meu filho. Achei ele na beira de um estrada e hoje ele praticamente faz parte de minha família. Dava-se para notar que Paulo já se achava bastante embriagado pelo tom de sua voz.
- Senta-se aqui moço! beba um copo de cerveja com este velhote. Disse o senhor Domingos.
Ildeu ficou um pouco atribulado mas acabou sentando-se. Não podia desfeitear nem o senhor Paulo e muito menos o anfitrião daquela festa.
- E aí moço? O que pensa da vida? O que você faz? Perguntou o senhor Domingos ao Ildeu. Pouco antes, Ildeu já havia respondido uma pergunta embaraçosa por parte de Flor, e então ficou surpreso com mais perguntas que lhe pareciam tocar exatamente naqueles seus questionamentos na conversa com a amiga. Pensou um pouco, antes de respondê-las.
- Prezado senhor Domingos! Perguntas difíceis estas do senhor! Não sei se vou dar conta de respondê-las. O que você pensa da vida! Se esta pergunta tivesse partido de mim para com o senhor certamente receberia uma resposta bastante diferente à que vou lhe responder. Digo isto porque, certamente o senhor também já pensou muito na vida! E dentro dos seus pensamentos certamente estavam incluídos os de estudar, trabalhar, fazer bons negócios e de vencer na vida. Estou certo ou não? Hoje certamente já não precisa mais pensar nisto. Tudo isto deve fazer parte do seu passado. Basta darmos uma olhada ao seu redor e teremos esta convicção. Em relação a segunda pergunta "O que você faz?" se o senhor tivesse que responde-la certamente diria: "Eu não preciso fazer mais nada, pois já consegui tudo que pretendia na vida". Senhor Domingos, não quero que com estas minhas considerações o senhor pense que eu esteja fugindo das suas perguntas. Muito pelo contrário, vou respondê-las. Vou ser bem sucinto, mas peço a gentileza que me permita respondê-las a partir da segunda para a primeira. O que eu faço atualmente é trabalhar, trabalhar muito, durante todo o dia, para tirar deste meu trabalho o sustento de minhas necessidades básicas e o custeio de meus estudos no período da noite. Em relação à primeira indagação, penso que a vida, com estes meus predicados, se é que, "o trabalho" e "o estudo" realmente, possam ser considerados predicados, espero que ela me leve, um dia, a possuir um pouco mais do que possuo hoje, ou seja, conhecimentos, o que será o bastante para um dia, com um copo de cerveja na mão, como o tenho agora, fazer um agradecimento a Deus e dizer: "Eu não preciso de mais nada, já fiz tudo que me foi possível fazer na vida". Saúde senhor Domingos!
Naquele momento, o senhor Paulo, pensando que Ildeu tivesse dado uma má resposta ao amigo Domingos e como já era um pouco tarde cuidou-se de despedir de todos, reuniu a família e voltaram para casa.
Na volta, Paulo percebendo que não estava em boas condições para dirigir passou a direção do carro para as mãos do Ildeu, reclinou no banco e adormeceu, só indo acordar quando o chamaram para descer já em sua casa. Ildeu guardou o carro na garagem e seguiu imediatamente para a sua casa sem fazer qualquer comentário.
Possivelmente aquelas respostas de Ildeu ao senhor Domingos seriam motivos para várias interpretações por parte de qualquer um que as tivesse escutado. Até mesmo o próprio Ildeu poderia ficar em dúvida sobre a real razão de seus conteúdos. O senhor Paulo já o tinha interpretado como má resposta razão pela qual, sem dar andamento aquela conversa, cuidou de se retirar voltando para casa. Será que ele iria mudar o seu pensamento quando terminasse o seu estado de embriaguez? Ou será que ele nem mais lembraria delas no dia seguinte. E o senhor Domingos? O que ele poderia estar pensando? Teria visto no Ildeu uma pessoa inteligente e culta ou simplesmente um rapaz mal educado e atrevido. Uma coisa era certa, o Ildeu tinha colocado em risco a sua própria integridade psicológica. Ildeu ao se recolher em seu quarto começou a pensar sobre aquele episódio. Dentro de suas próprias indagações, questionava: Será que exagerei ao explicitar o meu modo de ver a vida? Teria sido efeito das cervejas que tinha bebido? Bem, tinha respondido o que lhe passara pela cabeça naquela momento. Agora já era tarde, as palavras já tinham ido aos ventos. Tinha consciência do que havia dito. Só não podia realmente imaginar como aquele senhor Domingos, cercado de tanta ostentação estaria fazendo juízo de sua pessoa. No fundo Ildeu não estava nenhum pouco preocupado com o que o senhor Domingos iria ou estivesse pensando sobre ele. Tinha sim alguma preocupação a respeito do senhor Paulo. Afinal de contas tinha sido ele o responsável pela sua ida àquela festa, que até então tinha sido muito agradável na companhia de Flor. Também se preocupava em pensar que aquilo poderia vir comprometer as relações dos dois amigos. Pensava em dar alguma explicação ao senhor Paulo, talvez até mesmo inventando alguma mentirinha e colocando a culpa na bebida, mas só iria fazer isto se o senhor Paulo viesse tocar no assunto.
Como de costume, no dia seguinte Ildeu compareceu à casa do senhor Paulo para participar do almoço. Chegou um pouco antes. Ildeu e senhor Paulo, tiveram prazo para uma boa conversa acompanhada de uma cervejinha e tira-gosto a base de queijo mineiro. Trocaram algumas considerações sobre a festa do dia anterior, mas nenhum dos dois tocaram no assunto das tais respostas do Ildeu. Aparentemente Paulo tinha esquecido aquele incômodo episódio. Não era verdade, mas achou melhor manter o seu silêncio até que ele viesse a ter novamente com o senhor Domingos.
Assim que acabaram o almoço Ildeu pediu licença e voltou para casa para estudar pois no dia seguinte teria provas no colégio.